EM meados dos anos 80, o Porto era uma cidade cercada. Não pelo exterior, mas a partir de dentro. A sensação era a de que se vivia afastado de tudo o que de importante estava a acontecer no mundo. O que chegava de fora não era suficiente para aplacar a nossa fome. A rádio, a televisão e os jornais, que para os padrões de hoje pareceriam radicalmente alternativos, representavam o tipo de cultura e informação que era necessário rejeitar.

Dentro de muros, a resistência, como sempre, fazia o seu obscuro caminho. Fanzines, plaquetes e boletins, circulavam de mão em mão, nos cafés, nas lojas de discos, nas associações de estudantes e colectividades, numa espécie de samizdat legal. Desenhadas à mão, escritas à máquina, reproduzidas em lojas de fotocópias, em formato A4 ou A5, com mais ou menos páginas, quase sempre a preto-e-branco, as publicações alternativas da época seguiam a estética mais simples do DIY.

Edições sobre música, cinema, literatura, filosofia, política e outros temas impossíveis de classificar, circulavam um pouco por toda a parte, ao preço de custo. Havia de tudo. Boas ideias, bom pensamento, boa produção, mas também exercícios ingénuos e profundamente naïf. O mais importante, porém, era a energia, a potência, a necessidade incontrolável de fazer, mostrar, partilhar, de resistir ao cerco.

No meio da avalanche fanzinesca do Porto de meados de 80, destacava-se facilmente o trabalho de alguns autores/editores (a distinção entre autor e editor, na maioria dos casos, não era simples de fazer). António da Silva Oliveira (A. Dasilva O., 1958), não sendo um caso isolado, era um caso único. Publicava e ajudava a publicar. Não apenas fanzines, mas também revistas e livros. E não apenas revistas e livros, mas também projectos ligados aos mais diversos domínios da intervenção cultural e artística.

Em 1981, juntamente com Bernardino Guimarães, Daniel Guerra e Luís Guimarães, funda a Rádio Caos, um dos exemplos mais estimulantes do grande fluxo criativo gerado pelo movimento das rádios livres (rádios pirata). A Rádio Caos emitia programas sobre música (do jazz ao pop, do rock mais alternativo à clássica), literatura, ecologia e até radionovelas, escritas e interpretadas pelo próprio Oliveira. A pretexto da Rádio Caos, publicaram-se revistas, organizaram-se concertos, abriram-se espaços de colaboração entre numerosos criadores do Porto e de outros lugares. O amplo lastro deixado pela Caos, impedida de emitir no fim dos anos 80, é algo que está por estudar.

Ainda na década de 80, Oliveira cria as Edições N., a revista Última Geração e, mais tarde, as Edições Mortas, com um extenso catálogo que continua a crescer e que atravessa vários géneros. Em 1994, organiza as Conferências do Inferno, no Ateneu Comercial do Porto, e depois os Encontros com o Maldito, em colaboração com o grupo de teatro Contracena. Em meados dos anos 2000, abre a Pulga, uma livraria dedicada à venda de livros de pequenas editoras, num acto de resistência contra o monopólio das grandes cadeias de distribuição. Actualmente, edita e dirige as revistas Piolho e Estúpida.

Em cerca de 40 anos de contínua produção, António da Silva Oliveira impôs uma marca indelével e sem paralelo na cultura e contracultura da cidade. Uma parte importante da edição alternativa e independente, que vive hoje um momento de particular dinamismo, é devedora do trabalho pioneiro, exigente, insubmisso e heterodoxo de Oliveira e do seu grupo de colaboradores. Um trabalho que, de forma assumida pelo próprio ou em resultado da acção cega dos diferentes poderes políticos, culturais e académicos, foi sempre mais visível a partir da margem. A margem, que é onde tudo começa e onde tudo acaba.

ANTÓNIO da Silva Oliveira pertence à última geração de autores-editores-criadores cujo trabalho pode ser relacionado com a vida e o ambiente dos cafés do Porto. Após os anos dourados da segunda metade do século XIX e primeira do século XX, as décadas de 70, 80 e 90 são as últimas em que os cafés funcionam como palco principal onde se montam projectos, cruzam ideias, juntam recursos e combinam edições. É ainda nos cafés que se escreve, trocam manuscritos, vendem fanzines e revistas.

A esta geração coube o difícil papel de fazer a passagem entre os cafés e as redes sociais (incluo aqui os blogues). Os dois mundos conviveram durante pouco tempo. A passagem foi rápida e, para muitos criadores, impossível de acompanhar. A lógica de trabalho da rua, das gráficas e do papel, não é traduzível online. Os próprios códigos e o tipo de linguagem (especialmente literária) não funcionam, em grande medida, na internet. Por isso, o esforço de adaptação daqueles que cresceram nos cafés nem sempre tem sido bem sucedido.

Nos últimos anos, porém, vários grupos, muitos deles nascidos online (em blogues, no facebook ou através do contacto via email), têm recuperado a edição em papel, com a criação de novas editoras, revistas e até jornais. Há mesmo quem tenha apostado na impressão em tipografia tradicional, num movimento muito curioso de reaprendizagem e revalorização dos métodos antigos. Sem os constrangimentos técnicos do passado, graças ao aparecimento da impressão digital, por exemplo, há uma espécie de democratização da edição e um novo gosto pelas publicações em papel.

Em Lisboa, surgiram múltiplas editoras, com catálogos estimulantes e exigentes, que incluem revistas e livros de grande qualidade literária e gráfica. No Porto, começam igualmente a surgir sinais de uma dinâmica semelhante. Trata-se, na sua maioria, de projectos colectivos e alimentados a várias mãos, segundo uma lógica de grupo, tal como acontecia nos cafés. Sinais muito interessantes que vêm confirmar, digamos assim, a importância do trabalho de décadas de António da Silva Oliveira. Um trabalho de resistência permanente, sem concessões e sem interrupções, desde o fim dos anos 70.

Por Rui Manuel Amaral publicado in Bicho ruim

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