VEJO-OS desarrumados, nos passeios latrinados que ladeiam as calçadas, agora sem pátria, a arrumar, em movimento sincronizados (aqui chefe!), as pessoas veiculizadas das cidades.

Os olhares de tais indivíduos são plurais, habitam neles legiões de idos, de sombras sarjetadas de quem não se sabe, ainda, arrumado.

Se um carro aponta na curva, o assobio, a corrida cambaleada, o olhar esbugalhado na dose antecipada.

– Uma ajudinha chefe, para um caldinho.

Como se lhe servissem sopa, às tantas da tarde, a quem se assemelha a um vegetal desenraizado de uma terra qualquer que o pariu.

A mão estendida, mão aberta que não fala, não ouve, apenas se estende e amortalha para, aos poucos, ir consumindo o corpo, primeiro de esperança, depois de mentiras e, finalmente, de tão vão e oco, o vazio.

É vulgar o vestuário, que nunca regra geral, ser de cor das noites geadificadas, esfarrapadas, onde o frio faz morada e habita onde quem o acolha.

O cheiro vagueia pelo ar, acredito que ele mesmo nauseado, dos tempos e tempos abandonados.

É difícil imaginar, sequer ver, qualquer horizonte emparelhado, seja com a solidão, seja com alguém, onde se acalentam os dias adormecidos e se partilham cartões, canelados, cobertores, vãos de escadas, esquinas capitais e, quando a noite se permite aquecer, um banco de jardim.

Pergunto-me o que me separa disto, deles, do cartão canelado?

Que mundos tão desnivelados existem dentro de uma só vida?

Tenho sede, vontade de orvalhar pelo mudo, pelos caminhos e estações de comboio desta vida.

SOBRE O AUTOR: Miguel Gomes, nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. Apaixonado por Trás-os-Montes e Açores em geral e pela vida em particular, é co-autor das exposições de fotografia e poesia “Alma Tua“, subordinada ao vale do Tua, e “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordina à Rota do Românico, publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Publica regularmente crónicas na revista online “Bird Magazine” e começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.

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