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Manuel António Pina: “Mundo das palavras é uma aventura”

Manuel António Pina: “Mundo das palavras é uma aventura”

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MANUEL António Pina, poeta, cronista, escritor e jornalista, recentemente galardoado com o Prémio Camões 2011, revela-nos, com o discurso cativante que o caracteriza, a sua relação com a escrita.

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Existe uma grande preocupação com as letras… Por que razão? Letras e palavras, não é? Por um lado, porque gosto de palavras e de letras, e por outro… Por que gosto de palavras? Desde pequenino sempre tive uma relação muito próxima com as palavras e descobri desde miúdo que as palavras têm um poder fantástico, maravilhoso… As palavras não servem só para dizermos coisas, para descrevermos coisas e os nossos sentimentos… As palavras criam mundos… As palavras não servem só para dizer “o gravador, o papel, a caneta, a Luísa, a Mariana, a Mariana”. Dá-me para eu inventar a Mariana três e a Mariana quatro, pôr o papel a escrever na caneta… Não só servem para dizer, descrever o Mundo, mas também para criar mundos… E descobri isso quando era muito miúdo, mais novo até que vocês. Eu fazia jogos e brinquedos com casca de pinheiros da mesma maneira que com as palavras inventava coisas. Sempre gostei muito das palavras… E depois tive uma sorte enorme – que espero que vocês também tenham -, toda a minha vida, profissionalmente, acabei por trabalhar com palavras. Trabalho aqui há 40 anos, se calhar é a idade dos vossos pais. O meu trabalho é com palavras… Tive essa sorte. Trabalhar com uma coisa de que gostava e é natural que eu goste de fazer jogos de palavras… A fazer jogos de palavras encontram-se coisas fantásticas, há palavras que são amigas umas das outras, que se dão bem umas com as outras e gostam de estar juntas, há palavras que se detestam, outras que funcionam mal, que estão sempre a acotovelar-se… E isso é um Mundo fantástico, um mundo maravilhoso e ao mesmo tempo misterioso… Às vezes – e tenho quase a certeza de que já vos aconteceu -, as nossas palavras dizem coisas que nós não queremos dizer, como se começassem a falar sozinhas… Falam pelos seus próprios meios e isso é também uma aventura permanente. Não podemos dominá-las muito, ficam triste… Como vocês, se começarem a controlar muito a vossa vida diária, ficam tristes, deprimidas… Com as palavras é igual, é preciso dar-lhes liberdade, mas também não se pode deixá-las a falar sozinhas ou começam a dizer o que não queremos, em vez de falarmos nós. Lemos o livro “O tesouro”, no qual fala muito de Liberdade e de Democracia. Essas duas coisas coisas têm muita importância para si? Têm… acho que têm para toda a gente ou para algumas pessoas. Esse livro foi feita para o 20.º aniversário do 25 de Abril, foi uma encomenda que me foi feita. Normalmente, escrevo quando me apetece, mas a regra nestas coisas é muitas vezes não haver regra. E um dia, a comissão que estava a organizar os 20 anos do 25 de Abril… Já havia jovens da vossa idade que não sabiam o que era o 25 de Abril e a comissão convidou-me para fazer isso, numa sexta-feira. Não sei se sou capaz, disse, mas vou tentar explicar aos mais jovens o que foi o 25 de Abril, que foi um dia memorável, foi uma experiência… Valeu a pena viver só para viver aquele dia. Disseram-me que era para segunda-feira e era sexta… E o que saiu foi aquilo. É um livro com muitas, muitas edições, já vai em 20 ou 30… Só nessa altura, a Associação 25 de Abril vendeu mais de 150 mil exemplares antes de chegar ao mercado e agora foi editado pelo Campo das Letras e agora vai ser reeditado… A minha ideia e a minha preocupação a fazer esse livro era explicar a jovens que nasceram em liberdade o que era a falta de liberdade… No livro, diz lá assim: “A liberdade é como o ar que respiramos”… Nós nem nos damos conta de que respiramos, respiramos e pronto, mas quando nos falta o ar é um sufoco. E a liberdade é uma coisa parecida… vocês nem se dão conta de que são livres, mas quando perdemos a liberdade é um sufoco enorme. E depois queria tentar, através de histórias verdadeiras e de pequenos pormenores, explicar como não haver liberdade é completamente absurdo, não é natural. A razão não consegue alcançar como eram proibidas coisas como, para jovens como vocês, as raparigas não poderem andar nas mesmas escolas do que os rapazes, tinham de estar separadas. A minha mulher foi impedida de ir às aulas e uma colega dela expulsa porque foi de calças para a escola. E a amiga dela foi expulsa porque persistiu… Por que é que era proibido beber coca-cola… É estúpido, não é? Não é completamente estúpido os rapazes não poderem estar nas mesma escola que as raparigas? É sempre estúpido, mas naquele tempo era imposto. Não faz sentido nenhum… Nas bibliotecas, havias duas bibliotecas: uma com livros para raparigas, outra com livros para rapazes. É absurdo. Não podíamos ler os livros e as músicas que queríamos… Hoje, se calhar, nem os vossos pais fazem isso. Imagina, o Estado a dizer esta música é para ouvir, não podes ler aquele livro. E depois quanto mais se proíbe, mais as pessoas querem… Os filmes eram cortados, às vezes mal cortados, e as legendas cortadas… (…) Eram coisas absurdas… A ausência de liberdade é absurda e foi isso que quis dizer nesse livro. Antes do 25 de Abril, por exemplo, neste jornal, não se podia falar em suicídio… Se fosse em Portugal, se fosse lá fora podia publicar-se (…) E muitas vezes escrevia duas páginas e depois não saía nada, saía duas linhas… Os nossos professores costumam dizer-nos que para sermos escritores temos, primeiro, de ser bons leitores. Concorda?  

foto Pedro Correia/Global Imagens
Manuel António Pina: "Mundo das palavras é uma aventura"

Concordo… Ler é uma maneira de escrever e de nos escrevermos naquilo que lemos e de nos inscrevermos naquilo que lemos. Por exemplo, se forem ver o mesmo filme ou lerem o mesmo livro, há cenas que vêem de forma diferente, cenas que impressiona mais uma que outra… o que lemos, lemos connosco mesmo, com a nossa cultura, a nossa sensibilidade, a nossa experiência, com a nossa memória… É assim que lemos. As culturas, experiências, sensibilidades e memórias são diferentes de pessoa para pessoa. Tem a ver até com a nossa predisposição do momento… Quando entrei para aqui, entrei para a secção de Grande Porto e fiz muitas vezes notícias de crianças atropeladas e de acidentes com crianças… E fazia-as normalmente, como as outras notícias. Mas a partir do momento em que nasceram as minhas filhas, essas notícias começaram a provocar-me uma angústia imensa. E antes não me acontecia aquilo… E ler é a mesma coisa… Quando lemos, estamos a ler-nos a nós mesmo no que lemos e a reescrevermo-nos no que lemos, a reescrever em nós. Ler é também uma forma de escrever. Por outro lado, escrever é também uma forma de ler… Quem escreve, como eu escrevo, estou a ler-me a mim, à minha sensibilidade, à forma como vejo as coisas que me rodeiam, as minhas memórias… Quando estou a escrever estou a ler-me e a ver o Mundo através da cor dos meus olhos. Entre ler e escrever há relações muito íntimas, de grande intimidade. A escrita também é ritmo e tem ritmos diferentes. Quando escrevemos, a escrita também tem um ritmo e intuitivamente aprendemos os ritmos, as palavras e as técnicas de outros… Sem estudar, naturalmente e isso acaba por nos influenciar. Os livros que li foram importantíssimos para a minha escrita, as maiores emoções – desastres, mortes, amores fatais – foi em livros que li que vivi. Pode dizer-nos alguns dos autores que o marcaram? Se calhar são aqueles de que não me lembro os que me marcaram mais. Mas há muitos… Quando tinha a vossa idade, li um livro que me marcou muito, a “Ilíada”, e ainda hoje o leio de vez em quando. Alguns livros da Bíblia, um livro para crianças que só li quando tinha vinte e poucos anos, o Winnie the Pooh, do A. A. Milne, e não é o da Disney, é um livro onde a palavra tem uma força fantástica. Só lido… E poetas, Elliot, Fernando Pessoa… Outro livro que lemos foi o “Pequeno livro dos matemáticos”. Considera a Matemática importante na vida das pessoas? A Matemática é importantíssima. A Matemática é maravilhosa… Há um livro em verso que diz “tão maravilhoso como a Matemática, tão rigoroso como um mágico”. A Matemática é uma coisa mágica, porque há uma grande componente de jogo. Estabelecemos relações entre números, quantidades, e mesmo sem relação nenhuma com a natureza, a natureza comporta-se depois de acordo com aquilo… Há quem diga que Deus é matemático. Como se sente por ser “Prémio Camões”? Os jornalistas é que fazem essas perguntas… Como querem me me sinta? Sinto-me um bocadinho como um júnior chamado à equipa principal… Porque não esperava nada aquilo, nem sequer sabia que o júri estava reunido… Reparámos que em muitas das suas entrevistas aparece com um gato… São os meus gatos, tenho gatos, cães, periquitos… Gosto muito de animais e gosto dos animais todos. Posso dizer que são os meus melhores amigos, não desfazendo amigos de duas patas que tenho… Até costumo dizer que gosto dos animais todos, gosto até de alguns de duas patas, mas não gosto de todos os de duas patas, gosto de alguns. O Homem é o único animal que é desleal.

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2011-06-01
Maria Luísa Perestrelo, Mariana Oliveira, Mariana Pinto
in

http://www.jn.pt/

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O escritor e cronista do JN Manuel António Pina ganhou esta quinta-feira o Prémio Camões, o maior prémio literário de língua portuguesa. A distinção, justificada pela “inventividade e originalidade” da obra, foi atribuída por consenso do júri.

A decisão foi consensual e unânime numa reunião que durou menos de meia hora, disseram os membros do júri no final da reunião na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Poeta e autor de livros para crianças, Manuel António Pina, de 67 anos, nasceu no Sabugal, é licenciado em Direito, foi jornalista e é tradutor, professor e cronista, nomeadamente do JN. O Prémio Camões, criado em 1989 por Portugal e pelo Brasil para distinguir um escritor cuja obra tenha contribuído para a projecção e reconhecimento da língua portuguesa, foi-lhe atribuído por unanimidade do júri reunido no Rio de Janeiro. Integraram o júri desta 23.ª edição do prémio Rosa Maria Martelo (professora da Universidade do Porto), Abel Barros Baptista (professor da Universidade Nova de Lisboa), por Portugal, a escritora Edla Van Steen e o professor António Carlos Secchin, pelo Brasil e, em representação dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) a professora Inocência Mata e a escritora Ana Paula Tavares. No ano passado, o galardão distinguiu o poeta brasileiro Ferreira Gullar e nos anos anteriores foi entregue ao cabo-verdiano Arménio Vieira (2009), ao brasileiro João Ubaldo Ribeiro (2008) e ao português António Lobo Antunes (2007). Miguel Torga foi o vencedor da primeira edição do prémio, em 1989. “Inventividade e originalidade” Para a escolha de Manuel António Pina como vencedor do Prémio Camões 2011 os jurados tiveram em conta a “inventividade e a originalidade” de sua obra, afirmou o membro brasileiro do júri António Carlos Secchin. “Pina nos parece um escritor altamente qualificado nos diversos campos em que actua, em especial em suas poesias, para adultos e crianças, que possuem alto grau de inventividade e originalidade”, opinou o jurado. Secchin, que ao lado da escritora Edla Van Steen, representa o júri brasileiro, contou que a decisão foi tomada por “consenso”, e que desde que o nome de Pina foi sugerido, tornou-se o preferido, sem necessidade de maiores disputas. “Outros nomes foram citados, mas assim que o nome de Pina foi lançado, conseguiu uma aprovação geral”, relata Secchin. António Secchin explicou que para a decisão também foram considerados os trabalhos do autor noutras áreas da literatura, incluindo os seus textos como cronista, dramaturgo e romancista. Secchin destacou ainda que os trabalhos do poeta português ainda não foram publicados no Brasil, o que espera venha a acontecer após o anúncio do prémio. O representante brasileiro confessou que o facto de há três anos o prémio Camões não ser entregue a um autor português também foi levado em conta na hora da decisão. “Achávamos também que Portugal, que estava há vários anos sem receber o prémio, merecia a homenagem”, admitiu. 12 de Maio de 2011 in http://www.jn.pt/

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O escritor português Manuel António Pina ganhou o Prémio Camões, o maior prémio literário de língua portuguesa. A decisão foi consensual e unânime numa reunião que durou menos de meia hora, disseram os membros do júri no final da reunião na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Manuel António Pina (Sabugal, 18 de Novembro de 1943) é um jornalista e escritor português.

O autor licenciou-se em Direito em Coimbra e foi jornalista do Jornal de Notícias durante três décadas. É actualmente cronista do Jornal de Notícias e da revista Notícias Magazine.

A sua obra é principalmente constituída por poesia e literatura infanto-juvenil. É ainda autor de peças de teatro e de obras de ficção e crónica. Algumas dessas obras foram adaptadas ao cinema e TV e editadas em disco.

Está traduzido em França (francês e corso), EUA, Espanha (espanhol, galego e catalão); Dinamarca, Alemanha, Holanda, Rússia, Croácia e Bulgária.

Prémios

(1978)Prémio de Poesia da Casa da Imprensa (“Aquele que quer morrer”); (1987)Prémio Gulbenkian 1986/1987 (“O Inventão”); (1988)Menção do Júri do Prémio Europeu Pier Paolo Vergerio da Universidade de Pádua, Itália (“O Inventão); (1988)Prémio do Centro Português para o Teatro para a Infância e Juventude (CPTIJ) (conjunto da obra infanto-juvenil); (1993)Prémio Nacional de Crónica Press Club/ Clube de Jornalistas; (2002)Prémio da Crítica, da Secção Portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários” (“Atropelamento e fuga”); (2004)Prémio de Crónica 2004 da Casa da Imprensa (crónicas publicadas na imprensa em 2004).

2004 – Prémio de Poesia Luís Miguel Nava 2003 (Os livros).

2005 – Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores/CTT (Os Livros)

2011 – Prémio Camões

Bibliografia

1973 – “O país das pessoas de pernas para o ar” (lit. infanto-juvenil)

1974 – “Ainda não é o fim nem o princípio do Mundo, calma é apenas um pouco tarde” (poesia)

1974 – “Gigões & anantes” (lit. infanto-juvenil)

1976 – “O têpluquê” (lit. infanto-juvenil)

1978 – Aquele que quer morrer (poesia)

1981 – “A lâmpada do quarto? A criança?” (poesia)

1983 – “O pássaro da cabeça” (poesia)

1983 – “Os dois ladrões” (teatro)

1984 – “Nenhum sítio” (poesia)

1984 – “História com reis, rainhas, bobos, bombeiros e galinhas” (lit. infanto-juvenil)

1985 – A guerra do tabuleiro de xadrez(lit. infanto-juvenil)

1986 – Os piratas(ficção)

1989 – “O caminho de casa” (poesia)

1987 – “O inventão” (teatro)

1991 – Um sítio onde pousar a cabeça (poesia)

1992 – “Algo parecido com isto, da mesma substância” (poesia)

1993 – “Farewell happy fields” (poesia)

1993 – “O tesouro” (lit. infanto-juvenil)

1994 – “Cuidados intensivos” (poesia)

1994 – “O anacronista” (crónica)

1995 – O meu rio é de ouro /Mi rio es de oro (lit. infanto-juvenil)

1998 – “Aquilo que os olhos vêem, ou O Adamastor” (teatro)

1999 – Nenhuma palavra, nenhuma lembrança (poesia)

1999 – “Histórias que me contaste tu” (lit. infanto-juvenil)

2001 – “Atropelamento e fuga” (poesia)

2001 – “A noite” (teatro)

2001 – “Pequeno livro de desmatemática” (lit. infanto juvenil)

2002 – “Poesia reunida” (poesia)

2002 – “Perguntem aos vossos gatos e aos vossos câes” (teatro)

2002 – “Porto, modo de dizer” (crónica)

2003 – Os livros (poesia)

2003 – “Os papéis de K.” (ficção)

2004 – “O cavalinho de pau do Menino Jesus” (lit. infanto-juvenil)

2005 – “Queres Bordalo?” (ficção)

2005 – “História do Capuchinho Vermelho contada a crianças e nem por isso por Manuel António Pina segundo desenhos de Paula Rego” (lit. infanto-juvenil)

2007 – “Dito em voz alta” (entrevistas)

2008 – “Gatos” (poesia)

2009 – “História do sábio fechado na sua biblioteca” (teatro)

12 de Maio de 20111

in http://www.instituto-camoes.pt/

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O Têpluquê e Outras Histórias

Com pequenas alterações, O Têpluquê e Outras Histórias (2.ª ed., Porto: Afrontamento, 1995, ilustrações de José Guimarães; 3.ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, ilustrações de Bárbara Assis Pacheco) reúne cinco textos em prosa e três em verso, antes publicados em Gigões & Anantes (1974) e O Têpluquê (1976), desta feita antecedidos de um poema que o Autor dedica «à Ana no dia dos anos». A dedicatória aponta, desde logo, para um dos traços distintivos da obra: à matéria literária não é alheia uma certa cumplicidade estabelecida entre o Escritor e as suas filhas Sara e Ana, transformadas em personagens de seis das histórias.

O humor, as interrogações em torno da linguagem, da conversa e da desconversa, bem como a reflexão sobre as relações entre pensamento e linguagem constituem aspectos a ter em conta na abordagem de uma obra que, sendo um caso singular na nossa literatura para a infância, se inscreve numa tradição cujo representante máximo é, provavelmente, Lewis Carroll – autor que, juntamente com A. A. Milne, integra o núcleo das preferências literárias de Manuel António Pina.

Carrollianos são, de facto, a personagem do escaravelho Bocage e os diálogos que estabelece com Sara e Ana:

«– Então não estavas a crescer (…) estavas a diminuir.

– Não, disse o Bocage, depois de pensar um bocado. – Porque eu não estava a ficar cada vez menos, eu estava a ficar cada vez mais. Portanto estava a crescer. O que se passava é que estava a ficar cada vez mais baixo em vez de ficar cada vez mais alto. Percebes? (…)

“Este não regula bem” – pensou a Ana.» (2.ª ed., pp. 24-25)

À semelhança de Alice, na «Wonderland», o que Ana e Sara parecem compreender, nas suas primeiras experiências linguísticas, é que a linguagem verbal não é fiável, ou antes, é uma fonte de ambiguidades e duplos sentidos que convertem as relações interpessoais em espaços de insegurança, geradores de equívocos, mas também de situações cómicas.

Ao mesmo tempo, porém, é esta característica da linguagem que permite o eclodir da criatividade verbal e da poesia, por vezes interrompidas (ou talvez não) pela ilusão de que é possível criar uma língua nova, feita de palavras inventadas e «de toda a confiança» (2.ª ed., p. 30): não sabendo como distinguir os gigões dos anantes, Ana «arranjou uma teoria: / xixanava com eles e o que ficava / xubiante ou ximbimpante era o gigão, / e o anante o que fingia que não.» (p. 30).

Aqui e acolá piscando o olho ao leitor adulto, a escrita de Manuel António Pina não hesita em transformar o alfabeto numa espécie de espaço social dominado por conflitos de clara conotação política (é bom recordar que as primeiras edições destes textos datam de 1974 e 1976), já que a Ordem Alfabética, como todas as ordens mais ou menos arbitrárias, será posta em xeque por uma revolução: «depois das letras revoltaram-se as palavras, e depois os livros, e depois as bibliotecas, e depois tudo.» (p. 14).

Parece, pois, acertada a ideia de reunir esta produção num único volume. Percorrendo-o do princípio ao fim, o tópico da linguagem é introduzido pelo próprio título, o qual nos convida a centrar a atenção num texto bem-humorado, porventura o mais paradigmático e conseguido de toda a obra: «O Têpluquê» (p. 18), um achado em termos de criatividade linguística, com não poucos incentivos à reflexão, susceptíveis de estimular o chamado pensamento divergente.

Nas primeiras edições, de A Regra do Jogo, as imagens de João Botelho (ilustrador e cineasta) davam a ver o trabalho, conseguido, de um velho companheiro de jornada de Pina, responsável pelas ilustrações de outras obras do Escritor. A edição da Afrontamento, por sua vez, mostrava uma incursão de José de Guimarães na área do livro infantil. Quanto às ilustrações da edição da Assírio & Alvim, deram a conhecer uma nova ilustradora: Bárbara Assis Pacheco. Nascida em Lisboa, em 1973, licenciada em Arquitectura e em Filosofia e diplomada com um Curso de Desenho e um Curso Avançado de Artes Plásticas, esta pintora ilustrou também os livros Histórias para Ler e Sonhar e Natal na Quinta, ambos de Pedro Strecht.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

16 de Maio de 2011

in http://ainocenciarecompensada.blogspot.com/

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Manuel António Pina

O objecto central deste estudo reside no estudo e na reflexão sobre a literatura portuguesa infanto-juvenil, sobretudo acerca das obras que, ao longo das três últimas décadas, Manuel António Pina tem vindo a publicar nesse domínio. Na primeira parte, procede-se a uma investigação e uma problematização dos conceitos-base que compõem o enquadramento teórico deste trabalho. Assim, discutemse criticamente questões como a intertextualidade, o humor (e a sua correlação), bem como a competência literária e a sua conformação a partir do contacto precoce e continuado com textos literários. Ainda nesta secção, uma revisitação dos estudos historiográficos centrados na Literatura portuguesa para crianças e jovens, elaborados até 2000, serve de ponto de partida para uma abordagem das tendências, actualização e inovação da referida produção literária no período de 2001-2006. A segunda parte, a mais extensa, concretiza o objectivo fundamental desta investigação: apreender alguns dos traços e/ou dos aspectos ideotemáticos e dos recursos técnico-expressivos que singularizam a produção literária de Manuel António Pina, em particular os seus textos potencialmente recebidos por crianças e jovens, independentemente do modo literário no qual se situam (narrativa, poesia ou texto dramático). Assim, o rendimento semântico-estilístico da intertextualidade, do humor e, muito especialmente, da sua associação mútua, mecanismos que pontuam a generalidade da obra de Manuel António Pina, determinando a sua presença e o seu significado na literatura portuguesa de destinatário explícito infanto-juvenil, é discutido e sistematizado.

10 de Dezembro de 2010

Por Sara Raquel Reis da Silva in http://repositorium.sdum.uminho.pt/

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Manuel António Pina (Sabugal, Beira Interior, 18 de Novembro de 1943). Jornalista e escritor português.

O autor licenciou-se em Direito em Coimbra e foi jornalista do Jornal de Notícias durante três décadas. É actualmente cronista do Jornal de Notícias e da revista Notícias Magazine.

A sua obra é principalmente constituída por poesia e literatura infanto-juvenil. É ainda autor de peças de teatro e de obras de ficção e crónica. Algumas dessas obras foram adaptadas ao cinema e TV e editadas em disco.

Está traduzido em França (francês e corso), EUA, Espanha (espanhol, galego e catalão); Dinamarca, Alemanha, Holanda, Rússia, Croácia e Bulgária.

18 de Novembro de 2010

in http://pt.wikipedia.org/

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“O cavalinho de pau do Menino Jesus” de Manuel António Pina

Ao conto “O cavalinho de pau do Menino Jesus” – originalmente editado, em 2004, pelo jornal Expresso, numa pequena colecção de três volumes, com uma componente visual muito apelativa da autoria de Danuta Wojciechowska – juntam-se, nesta obra de Manuel António Pina (MAP), ilustrada por Inês do Carmo, as narrativas “O sorriso” e “Mais depressa, Reis Magos, mais depressa!”.

No primeiro texto referido, “O cavalinho de pau do Menino Jesus”, convivem, num mesmo espaço ficcional, o Pai Natal e o Menino Jesus. Elidindo-se as fronteiras entre o universo cristão e o universo pagão e aproximando-se dois tempos distantes, conta-se, aqui, sempre num registo vivo e frequentemente dialógico, os preparativos, a viagem e a chegada do Pai Natal a Belém, depois de longas horas de trenó desde o Pólo Norte até ao estábulo onde nasceu o Menino Jesus, aludindo-se, ainda, sem apagar o seu natural dramatismo, ao desfecho da sua vida. A associação do Menino Jesus ao universo da infância e ao seu natural gosto infantil pelos brinquedos, desde logo, sugeridos pelo título, representa um dos aspectos mais atractivos do ponto de vista da recepção infantil deste texto. Numa apelativa construção literária de carácter lúdico, marcada por ecos de textos tão variados como o Evangelho ou o poema «Twas the night before Christmas», escrito, em 1822, por Clement Clark Moore, MAP dessacraliza figuras e episódios e, inventando gestos e situações católica ou biblicamente erradas, diverte o leitor.

No segundo conto mencionado, que se intitula “O sorriso” e é o primeiro da colectânea, o Menino Jesus ainda se encontra dentro da barriga da mãe, centrando-se o discurso nas próprias sensações, impressões e dúvidas do Deus-Menino. A humanização das figuras bíblicas e, em particular, a densidade psicológica que os dilemas confessados pelo Menino Jesus deixam pressentir fazem desta narrativa, cremos, uma das mais tocantes do universo literário português de destinatário preferencial infanto-juvenil. Um dos textos mais geniais de MAP, este conto confirma exemplarmente o carácter imaginativo e independente deste autor, já anunciado, aliás, em textos como “O menino Jesus não quer ser Deus”, presente em O País das Pessoas de Pernas para o Ar (1973).

A terceira narrativa que integra a colectânea, sendo protagonizada pelos Reis Magos, acompanhados pelas Rainhas Magas, desenvolve-se em torno do nascimento de Jesus. Este acontecimento é anunciado pela Estrela de Belém que se desloca à “Arábia Feliz” e, depois de uma espera quase desesperada, acaba por acompanhar os três (atrasados) Reis Magos até ao estábulo, já no dia de ano novo. No fundamental, o humor, frequentemente de raiz nonsensical, estrutura-se a partir da recriação dessacralizadora dos comportamentos das personagens ou, por outras palavras, na atribuição de certas características perfeitamente humanas e algumas, até, a reflectirem determinadas marcas de contemporaneidade. Recorde-se, por exemplo, que a “Estrela de Belém estava irritadísssima, farta de esperar. Ainda por cima tinha chegado o Dia de Ano Novo e o barulho era tal em toda a cidade, com fogo-de-artifício por todo o lado e gente a atirar latas e panelas para a rua, que a Estrela, muito aborrecida, quando os Reis Magos finalmente chegaram ao Palácio, os repreendeu…” (Pina, 2009: 17). Atente-se também no facto dos Reis Magos, já pais de “Principezinhos Magos”, serem casados com as Rainhas Magas e de estas também quererem ir adorar o Menino Jesus, tencionando levar-lhe “Uma (…) um bibe de seda, outra um guizo de prata e a terceira uma caixa de música com canções de Natal.” (idem, ibidem). Mesmo a figura bíblica da Nossa Senhora é alvo de um tratamento manifestamente inesperado: “(…) Nossa Senhora fitou-os com severidade: ‘Já estamos a 6 de Janeiro, viestes muito atrasados. Temos estado à vossa espera desde o Dia de Natal, pois estava escrito que viríeis nesse dia. Por pouco já não teríamos tempo de fugir para o Egipto.’” (idem, ibidem).

O efeito cómico deste conto surge reforçado ainda, de forma determinante, pelo uso insistente e muito pessoal da maiusculização de um número elevado de vocábulos e de expressões, criando-se, quanto a este aspecto, uma espécie de norma gramatical muito própria, como se verifica em “Piquenique”, “Escudeiro Mago”, “Caixa de Magia”,”Hipóteses”, “Florestas e Oásis”, “Alimentos”, “Outro Caminho”, entre outros.

Carla Maia de Almeida, que declara num atento post do seu blog, “Jardim Assombrado”, dedicado a este último livro de MAP, «A eleger um livro infantil do Natal de 2009, só pode ser este: O cavalinho de pau do Menino Jesus e outros contos de Natal», conclui «E se algum leitor considera isto [tudo, ou melhor, «essa história de um Menino Jesus inventado no Céu, nascido de uma mulher que “não tinha amado antes de o ter”, como diz o poema de Alberto Caeiro, é a coisa mais triste que há»] uma heresia, é melhor passar ao lado do livro.». E, na verdade, importa sublinhar que estes três textos, com temática natalícia, mas aqui redimensionada segundo o estilo do autor, se estruturam sob o signo da paródia, substantivando, assim, um recurso paradigmático muito frequente na literatura pós-moderna. Tendo como ponto de partida a intertextualidade, a deformação criativa de um texto preexistente (principal proposição inerente à paródia enunciada por Carlos Ceia, no E-Dicionário de Termos Literários), neste caso concreto, do texto bíblico, facilmente um objecto tido como historicamente modelar (na acepção do mesmo estudioso), alimenta a escrita dos textos da colectânea em divulgação, sendo, por vezes, alvo de uma salutar ironia e de uma contagiante criatividade, sustentadas por uma “liberdade livre”.

As ilustrações, em tons fortes e contrastantes, procuram seguir de perto o texto verbal, ainda que nem sempre com a eficácia e a coerência esperadas (veja-se, por exemplo, a recriação icónica discrepante do “cavalo de pau de crina dourada e arreios vermelhos”). Além disso, o discurso visual, apesar de ensaiar a representação dos momentos nucleares da acção e das personagens principais, carece, em certos momentos, de perspectiva, aspecto que, em determinados casos, é superado pelos jogos de luz e sombra, bem como de texturas. Genericamente feliz do ponto de vista da materialização pictórica de algumas das temáticas mais relevantes dos textos de MAP – por exemplo, o Natal, a infância, o amor ou a maternidade –, a componente ilustrativa parece, porém, “abstrair-se” do humor subtil e da intencionalidade subversiva que distinguem estas narrativas e que representam, aliás, dois dos traços mais singularizadores da produção literária do autor em causa.

Referência bibliográfica

PINA, Manuel António (2009). O Cavalinho de Pau do Menino Jesus e outros contos de Natal (ilustrações de Inês do Carmo). Porto: Porto Editora.

Sara Reis da Silva

(Universidade do Minho | Membro associado do NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

Inicialmente publicado em Malasartes, n.º 19, Abril 2010

28 de Setembro de 2010

in http://ainocenciarecompensada.blogspot.com

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Uma homenagem a Manuel António Pina

Como foi dito no sábado, as homenagens acontecem aos melhores. Manuel António Pina é um dos melhores e isso foi defendido de forma unânime naquela tarde, perante um auditório apinhado.

A homenagem foi sobretudo emotiva, como devem ser todas. Ouvimos falar do grande escritor que é e como as suas crónicas levam pessoas, todos os dias, a começarem a ler o jornal pelo fim. Partilharam-se confissões e histórias de quem tem o privilégio de privar com Manuel António Pina. Enalteceu-se principalmente a sua poesia e a forma como inventou a literatura infantil em Portugal, como levou a literatura até à literatura infantil.

Manuel António Pina seguiu a sessão com um olhar atento e um tanto envergonhado e, no final, preferiu não falar. Em vez disso, deu-nos aquilo em que é melhor: a poesia. Durante largos minutos ouvimo-lo declamar a sua própria poesia e não conseguimos imaginar melhor forma de encerrar uma homenagem.

8 de Junho de 2010

http://www.feiradolivrodoporto.pt/

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A “desnecessidade” da poesia contemporânea segundo Manuel António Pina

Acabou pouco depois da meia-noite e, apesar do evidente cansaço, a plateia pedia mais até o Pina, de pé no acelerador, nos levar a todos a viajar nas  suas palavras. Meteu a quinta e foi por ali fora, como quem está tão à vontade com os seus leitores que lhes pode confessar qualquer coisa. Não há muita gente que mereça do seu público tanto carinho. Sou suspeita para dizer isto mas o Manuel António Pina, o que tem “um íman complacente”, merece.

Da escrita falou os perigos da “vigilância matar o abandono” e que, por isso, escreve muitas vezes com as palavras que há e não com as que queria. Depois, acrescenta baixinho: “o que  acaba por ser bom porque, no final das contas, dá uma oportunidade a palavras que, de outra forma, não apareciam.”

Da poesia contemporânea disse: “há muita ‘desnecessidade’. Muito daquilo, sente-se, não precisava de ser escrito. E, quando é assim, é uma pena.”

O resto ficará na memória de quem esteve, na passada Sexta-Feira, no auditório da Escola Soares dos Reis para a apresentação de “Por outras palavras & mais crónicas de jornal”. Com pena que não tenha sido filmado. Dava uma fantástica aula de vida e de literatura.

7 de Junho de 2010

http://clubeliterariodoporto.wordpress.com/

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“Safari ao volante” M. A. Pina

Descobri finalmente uma grande razão (na verdade, várias pequenas) para comprar um GPS. Antes nem queria ouvir falar em sistemas de navegação: irritavam-me os seus conselhos rectilíneos, tipo catequese rodoviária, e a sua constante preocupação em manter-me no bom caminho. Mas acabo de saber que uma empresa do Porto, sensível ao “nicho de mercado” (acho que é assim que se diz) de condutores como eu, com gosto pela aventura, acaba de anunciar um modelo em que “a locução tradicional de coordenadas, séria e cinzenta”, será substituída pelas vozes de Pinto da Costa, Sócrates, Jardim, Valentim Loureiro e Cavaco Silva, transformando qualquer entediante regresso a casa à hora de ponta num safari imprevisível. Quem melhor que Jardim para meter um pacato condutor num engarrafamento confuso e barulhento? E Valentim Loureiro e Pinto da Costa para lhe mostrar os mais imaginosos atalhos e sentidos proibidos? Ou Sócrates para ele dar consigo num beco sem saída? Eu, para já, começarei com Cavaco: sempre sonhei ficar preso numa rotunda como a de “Traffic” de Jacques Tati, a andar à volta sem sair do sítio.

17 de Maio de 2010

http://jn.sapo.pt/Opiniao/

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Manuel António Pina

(Fernando Veludo/nFactos (arquivo)

Entrevista: Toda a verdade sobre os gatos, o cão, o Pooh, e o Pina

Por Anabela Mota Ribeiro

Cita T.S. Eliot e mostra fotografias antigas. Aponta para o casaquinho à grilo que usou num Carnaval e explica que religião e religare vêm do mesmo. Para Manuel António Pina, isto anda mesmo tudo ligado. A comida que se come, a morte que se inflige às bactérias com o antibiótico, o tauismo do Winnie The Pooh, a empregada de língua afiada que faz parte da família há 20 anos. “Ler, como diz o Borges, é uma forma de felicidade.” Quando era pequeno, os outros miúdos faziam música, cantavam. Ele lia e escrevia versos.

Tem uma fixação no Winnie The Pooh…

É um dos meus livros de referência. Nós somos o que lemos, e eu, não sei se sou alguma coisa ao Winnie The Pooh, mas gostava de ser… Ao [ Jorge Luís] Borges, perguntaram assim: “Quem é afinal Borges?”; ele começou a responder como os futebolistas, na terceira pessoa, “Borges não existe” [risos]; depois passou para a primeira pessoa do singular: “Sou todos os livros que li, todas as pessoas que conheci, todos os lugares que visitei, todas as pessoas que amei.” É verdade – agora digo eu.

Como se deu o encontro com o Winnie The Pooh, de Milne?

Descobri-o tarde, era um jovem adulto. Em casa dos meus pais havia poucos livros. O primeiro que li, tinha uns oito ou nove anos, emocionoume imenso. Foi A Vida Sexual, do Egas Moniz.

Comecei a ler livros por causa das bibliotecas da Gulbenkian que apareciam lá na terra.

Como o apresentaria? É improvável que um encontro com uma figura da infância se dê na idade adulta…

E de uma forma muito forte. É um ursinho com muito pouco miolo, que tem uma relação com o mundo e consigo dominada por uma nonchalance e pela bondade – que é a grande qualidade humana. É muito medroso, mas tem aventuras de grande coragem. Há uma nonchalance que há, ou que gostaria que houvesse em mim, ou que procuro que haja em mim, [um desejo de] deixar-me atravessar pelas coisas. O ursinho é uma imagem de um universo perdido, de um mito, de um passado dourado – que nunca existiu. É uma espécie de reencontro com a infância. E esse reencontro é uma necessidade natural em sociedades urbanas como as nossas, muito agressivas, competitivas e pouco espontâneas. É natural que em silêncio, na solidão, sintamos essa melancolia da infância.

Era à voz da infância que eu queria chegar, cruzando o Pooh com o título Um Sítio onde Pousar a Cabeça (1991). O Pooh simboliza o espaço mitificado da infância? Onde tudo era puro e onde podemos, pelo menos na memória, pousar a cabeça.

O ursinho não é propriamente puro, é espontâneo; tem uma relação directa e imediata com as coisas e com a palavra. Seduz-me a sua relação com as palavras, que é simultaneamente de inocência e de malícia. E seduz-me a capacidade formidável que têm as palavras de fazer sentido e de produzir sentido. A palavra “criar”, pelo menos em termos fonéticos, tem muito que ver com a criança; criança também é aquele que está em criação. No Pooh tudo é feito através do discurso.

E que tem isto a ver com os seus livros?

Escrevo o livro comigo mesmo, com o meu sangue, com a minha vida, com a minha memória. A minha escrita tem muitas alusões, frases. Tenho a cabeça cheia de frases!, do Eliot, do Rilke, do Alexandre O’Neil, do Ruy Belo e do Winnie The Pooh; para além de outras que não reconheço, e que se calhar são as mais importantes ou significativas. Quando falo na minha poesia do que está atrás dos cortinados, o que está debaixo da cama, esses medos infantis, tenho no horizonte relações com esses poemas do Milne.

O primeiro espaço da sua infância foi o Sabugal.

No dia 4 de Abril, vão-me fazer uma homenagem [entrevista realizada dias antes]. Vão pôr uma placa na casa onde nasci, e pediram-me um verso para lá pôr. Andei à procura. Uma das ideias centrais da minha poesia é a morte, o sítio onde pousar a cabeça. O regresso a casa é a melancolia da infância e é também a morte. Do mesmo modo que nascemos do ventre da mãe, há um regresso, uma espécie de percurso circular, ao ventre da terra. Por algum motivo dizemos “a terra natal”.E muita gente quer ser enterrada na terra onde nasceu, por mais voltas que tenha dado.

[afasta-se] Deixe ver se encontro aqui esse livro…, onde é que está isso agora? Deixei-o no carro. Aqui é onde tenho as coisas relativas aos meus livros, este armário todo… Vou dizer-lhe um poema: “Os homens temem as longas viagens, os ladrões da estrada, as hospedarias e temem morrer em frios leitos e ter sepultura em terra estranha.” Começa assim. “Por isso os seus passos os levam de regresso a casa, às veredas da infância, ao velho portão em ruínas, à poeira das primeiras, das únicas lágrimas.” Continua por aí abaixo.

Vamos até à casa onde nasceu?

Nasci em casa. Era a casa dos meus avós. Tenho tantos poemas sobre aquilo… E, no entanto, saí de lá com seis anos. O meu pai era funcionário das Finanças. Só podia estar dois anos em cada terra para não fazer amigos. Isso foi horrível para mim, porque não fazendo ele amigos, eu também não fiz. Sair do Sabugal foi muito penoso.

Quando saiu do Sabugal, iniciou a sua viagem. Gosta de viajar?

Há uns anos, uma miúda perguntou-me: “Como é jornalista, viaja muito?” “Não gosto nada de viajar!” E ela: “Se calhar foi por viajar tanto quando era pequeno…” Tinha uns dez ou 11 anos, e chamou-me a atenção para isso. Fui uma espécie de Sísifo: sempre a fazer amigos e a perdê-los. Quando os amigos estavam feitos ou a fazer-se, perdia-os de novo, e ia para outra localidade, e recomeçava a fazer, tudo do princípio, sabendo que os ia perder daí a três ou quatro anos, e que tinha de recomeçar de novo. Passei a infância nisto.

Mas não desistia?

Não. Estamos condenados a isso. Os meus amigos mais antigos são dos 18 anos, aqui do Porto.

Não tenho amigos da instrução primária, mas tenho nomes: o Américo, o Pedro Matos Neves (esse sei que morreu na guerra colonial).Tenho a cabeça cheia desses nomes, mas os rostos já se perderam. Eu tinha um pesadelo quando era miúdo, recorrente, que tinha que ver com o regresso a casa.

Como era?

Eu vivia numa casa e atravessava a rua para ir à escola; entretanto, começava a passar um comboio eterno, passava, passava, e não podia regressar a casa. Era horrível! É o problema do regresso a casa.

Há um poema seu que diz assim: “A alegria da viagem é o regresso a casa.”

A minha vida, na infância e juventude, foi uma permanente, uma eterna partida. É natural que tivesse a melancolia do regresso.

Era um menino triste?

Não. Essas coisas são profundas demais para terem expressão à superfície, na tristeza ou na alegria. São vivenciais; na altura não nos apercebemos delas, e são as que nos marcam mais.

Não desistia de fazer amigos, que era um modo de construir casa, mesmo sabendo que o desmoronamento era inevitável. Não criou um muro entre si e o mundo. Não o fez menos loquaz.

Se calhar até aumentou a minha loquacidade. A minha infância foi uma longa queda, com a minha existência a desmoronar-se permanentemente, a ter de ser recriada. Agarrar-me é uma forma de criar raízes.

Olhando à volta, percebe-se que acumula coisas.

Tenho muita dificuldade em deitar coisas fora.

Podia pensar, em função do seu passado, que o desprendimento lhe fosse mais fácil.

Foi exactamente isso que me fez ser mais agarrado às coisas.

Sabe o que é isto aqui?

São coisas importantes para tratar.Tem uma pilha de um metro de coisas importantes para tratar!

Descobri que as coisas importantes, se as pusermos num monte, passados uns meses deixam de ser importantes [risos]. É tudo inútil!, são urgências que entretanto deixaram de ser urgentes. Mas nem calcula as coisas que tenho da infância. Tenho até um casaquinho preto que a minha mãe e a minha tia Céu me vestiram numa festa de Carnaval. [Afasta o cinzeiro da secretária apilhada de coisas] Eu quase não fumo. Sou muito inseguro. O cigarro também é uma forma de insegurança. Eu é que estou pendurado no cigarro, não é o cigarro pendurado em mim. As minhas amigas psicanalistas dizem que se eu não escrevesse poesia era um grande cliente delas.

Nunca foi cliente de psicanalista?

Não, e não gosto de psicanalistas.

Porquê?

Desconfio. São polícias das almas. Não gosto nada que me espreitem cá para dentro. [Mostra fotografias] Isto era a minha avó, o meu avô, a minha mãe e a minha tia Fernanda. Isto são as minhas filhas. Este é o Mário Cesariny. Isto sou eu e o meu irmão.

Sem o bigode, nem o reconheço. Deixe-me tentar perceber se é o mesmo.

Sou, sou. Sou o mesmo e outro. Estava a ver se encontrava as tais fotografias… Isto é a minha mulher. O meu avô. Tenho um poema, O casaquinho preto. Tenho esse casaquinho aí, vou buscar, tem de ser, está bem?

Está.

“Como é que eu podia saber na altura que eu era só uma memória do que sou hoje, de alguém que eu na altura desconhecia?” Estava a falar da infância: tenho uma memória muito vaga daquela casa, tenho só sombras. A memória mais antiga que tenho é concreta, mas as outras não. “Ao fundo da escada havia uma floreira branca e lilás, com uma flor descolorida, talvez tenha sido um sonho a preto e branco e isto faça algum sentido, a avó morria de cancro no quarto de baixo, vomitando um líquido branco, andava por ali a morte, falando baixo, subindo e descendo as escadas. Vi-a muitas vezes hesitando, como se estivesse perdida também ela, ou como se estivesse viva…”

Vai insistentemente aos poemas… A poesia, como o cigarro, é um biombo que interpõe para evitar ou adiar o encontro com os outros?

Não. Quando começo a escrever um poema nunca sei o que vou dizer. O Eliot fala de um ser informe que se pergunta a si mesmo: “O que virei eu a ser?” O Paul Claudel diz que sente qualquer coisa nele que se quer transformar em palavras. A poesia é uma busca da identidade, ou seja, de coincidência. Na busca dessa coincidência, é natural que cada um de nós construa uma narrativa, construa um passado. Os poemas sobre a infância são uma tentativa desesperada de construir um passado onde possa regressar, onde possa encostar a cabeça. Mas isso é comum a todos os seres humanos, quer tenham uma existência nómada, como foi a minha, quer tenham uma existência sedentária – a tentativa desesperada de se encontrar a si mesmos, de coincidir com o rosto que vêem diante do espelho. Não sei como é que hei-de explicar isto…

Como foi o seu encontro com as palavras?

Aprendi a ler muito cedo. Os meus pais viviam com muitas dificuldades económicas. Tanto que fiz o curso todo sem assistir a uma aula de Direito. Fui para Direito porque era o único curso que se podia fazer sem ir às aulas. Tinha um primo numa república e às vezes conseguia estar um mês em Coimbra. Mas ia assistir às aulas de Literatura, do Paulo Quintela! Isto vinha a propósito de quê? Ah, não havia livros, mas o meu pai todos os dias, quando vinha da repartição, levava o jornal para casa. Aprendi a ler nos jornais. E sabe como são as mães… Tem filhos?

Não.

Mas tem mãe. As mães são os seres mais admiráveis que há. A minha mãe é que guardava essas coisinhas todas que eu escrevia. Desde que me conheço, escrevia todos os meus sentimentos, a minha relação com o mundo e com as coisas. Escrevia em verso.Como é que um miúdo de seis anos escreve versos?

Os versos eram dísticos, o verso mais simples. Alguém me contou a história do milagre das rosas e eu pu-la em verso. “Nasceu um dia em lua-de-mel, uma princesa chamada Isabel.” O “que queres ser quando fores grande?”, fazia sempre em verso. Queria ser detective, aquelas coisas que os rapazes querem ser.

Os rapazes querem ser detectives? Essa nunca tinha ouvido.

Queria ser detective por causa dos livros de banda desenhada. O Cavaleiro Andante vinha aos sábados, chegava na camioneta e eu andava com o meu irmão à pancada para ver quem lia primeiro. Queria ser padre.

Padre? Porquê?

Eu queria ser santo. Imaginava este mundo como sendo a barriga, o interior de um ser a quem chamamos Deus, que por sua vez era um habitante de outra terra, que vivia na barriga (que é o sítio onde está a alma) de outro ser que era o seu Deus, e assim até ao infinito. E para mim era a mesma coisa: na minha barriga viviam muitos pequenos seres que me designavam a mim, não sabendo quem eu era, por Deus.

Era um elo numa cadeia.

Uma cadeia para o infinitamente grande e para o infinitamente pequeno. Não está longe da verdade. De vez em quando, dava um soco na barriga, “ai, provoquei um terramoto nos universos inferiores todos”; imaginava os seres dentro da minha barriga atirados ao chão, a pedir piedade, piedade! [risos].

Donde veio a ideia de querer ser santo?

Queria ser bom até ao limite, ao extremo. Na Sertã, vivia num extremo da vila e a escola era noutro extremo; vinha a pé para a escola e aproveitava para rezar todo o caminho. Era investir na minha santidade.

Era também um desejo de agradar à sua mãe? A sua mãe era religiosa?

Era. O meu pai era anticlerical primário. Quando fi z o 7.º ano do liceu, a alternativa para as pessoas com poucos meios era ir para a academia militar ou para o seminário. Para o seminário, nem pensar! O meu avô materno tinha todos os defeitos: era judeu, anarquista, republicano e anticlerical. Na minha família, eram todos judeus de origem; ele era Ismael, a minha mãe Sara.

Onde é que pára o judaísmo e o desejo de ser santo?

Eu, que já fui agnóstico, agora sou mesmo ateu. Mas tenho muita sedução por religiões e por livros religiosos. Sou um grande leitor da Bíblia, embora leia aquilo como um romance.

A prosa nunca foi a sua forma?

Nunca. Ainda hoje leio pouca ficção, e leio sempre os mesmos: o Malcolm Lowry, o Conrad, o Melville, o Jack London, o Mark Twain. Li o Eça de Queirós porque tive um prémio literário no liceu de Aveiro. Era no valor de 500 escudos em livros, e comprei as obras completas do Eça. Passava o tempo metido na biblioteca; não era para me cultivar, era por prazer.

Porque aquilo era uma casa.

Talvez. Está a psicanalisar-me! [risos].

Fale-me da sua mãe, por falar em psicanálise.

A minha mãe também fazia versos. A minha mãe ficou muito magoada quando morreu o meu avô, pai dela, e eu não escrevi nenhuns versos. Tentou fazer uma fraude. “Sabes, escreveste uns versos tão bonitos sobre a morte do teu avô…”, “Não escrevi nada”, “Escreveste, escreveste, encontrei-os ali”. Queria convencer-me de que era eu que os tinha escrito! E mostrá-los ao meu pai e às amigas. “Não escrevi nada, é mentira, foste tu.” Esses versos terminavam assim: “Estás no Céu avozinho, junto de Nosso Senhor”! [gargalhada] Fiquei furioso. Ficou furioso porque lhe queria atribuir uns versos que não eram seus? Sim. E fazia versos que queria que eu recitasse para as visitas: “Quero ser alferes, e de um lindo regimento de mulheres.” Um dia, o tesoureiro da Fazenda Pública e a mulher foram visitar-nos e a minha mãe esteve a ensinar-me uns poemas que fez. Eu tinha vergonha de os ler. Finalmente, acabei por fazê-lo escondido atrás da porta. Nunca contei isto a ninguém. Agora que me está a fazer a psicanálise, lembro-me destas coisas engraçadas. A minha mãe morreu há dez anos.E escreveu versos?

Não. Não escrevo poemas sobre nada.

A sua poesia escreve-se com memória, não com sentimentos.

Toda a poesia se escreve com memória de sentimentos, mas não com sentimentos. O Oscar Wilde dizia que “a má poesia normalmente é sincera”. Os sentimentos são maus conselheiros. Outro dia recebi um original do João Luís Barreto Guimarães sobre a morte do pai; peguei no livro com a maior das desconfianças, mas é admirável.

Na infância escrevia em versos. Sobre quê?

Sobre sentimentos.

Escreveu versos sobre a morte da cadela Coquita e não escreveu sobre a morte do seu avô. Porquê?

Sabe-se lá porquê? Nunca me forcei a escrever. Não queria ser dramático, porque estas coisas são simples: mas é como se os poemas é que quisessem escrever-se em mim. Os sentimentos sentem-se, a poesia não tem nada que ver com isso.

Como naquele seu verso: “A palavra sangue não sangra”?

Se me dói uma coisa, dá-me para chorar, para gritar, e não para escrever. Agora já não choro há muito tempo, mas houve uma altura em que chorava imenso. Sem motivo. Já com 30 anos, 40 anos, fechava-me sozinho no quarto, agarrava-me à almofada e chorava. Saía dali com um conforto… A minha poesia, quando era miúdo, tinha que ver com efabulações, sonhos, desejos. Os temas de toda a arte reduzem-se à morte e ao amor.

Eros e Tanatos.

Eros e Tanatos, e o Tempo também. As questões fundamentais de todos nós, do Homem enquanto tal, são aquelas que os nossos filhos nos põem quando têm três anos. “De onde é que nasci? Onde é que eu estava antes de ter nascido? Para onde se vai quando se morre?” Os sistemas filosóficos, as religiões tentam responder a essas perguntas. E no meio tempo: “Quem somos” ou “o que somos”. É natural que à beira do abismo o Homem se interrogue ou fique ansioso. Essa interrogação é o motor da arte, da filosofia, da poesia, da música.

Quis ser escritor?

Nunca. Os miúdos, nas escolas, perguntam-me se quando era pequeno queria ser escritor. Até costumo responder-lhes com um jogo de palavras: “Que o escritor é que quis ser eu.” E é verdade.

Não quis ser escritor, mas quis ser santo. Influências bíblicas abundam na sua poesia.

Quando era jovem, gostava do Cântico dos Cânticos. Tinha aquele conteúdo carnal… Eu tinha uma namorada e uma Bíblia; Salomão fala dos seios de Sulamita: “Os teus seios são como duas pombas, para não falar do que está dentro.” E na minha Bíblia tinha uma nota de rodapé: “Entenda-se os dois seios da Igreja, a Moral e a Doutrina.” Eu dizia à minha namorada: “Hoje tens mais Doutrina que Moral” [gargalhadas]. Depois também me interessei pelo Apocalipse. Mais velho, pelos livros do Antigo Testamento.

O meu evangelho era o de São Mateus. O Pasolini é que fez um grande filme, Il vangelo secondo Matteo.Além de ser belo, é um filme muito carnal.

Também. Agora, que já sou sexagenário, tenho uma certa preferência pelo Génesis e pelo Evangelho de São João, que acho que é o mais poético. Tenho a cabeça cheia de versículos da Bíblia. “Podes ter o dom das línguas, mas se não tiveres o amor…” Conhece esse? Vou ler, desculpe lá, é comovente e tudo. É do São Paulo, e não gosto nada do São Paulo: é misógino.

Não gosta do São Paulo porque ele é misógino?

E por outras coisas. Mas esta é lindíssima. “Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência e de toda a fé, a ponto de transformar as montanhas, se não tivesse o amor, eu nada seria.”

O que seria da sua vida sem o amor?

Costumo dizer uma coisa: o amor é a bondade que se aplica a tudo. É a bondade, é a beleza. O amor é um conceito só. Sou um céptico, mas conheço duas ou três ou quatro pessoas bondosas.

A minha sogra é uma pessoa bondosa, a minha mulher também é. O amor é o principal veículo de comunicação. [Aproxima-se uma gata] (É a minha gatita, deve ter tropeçado.) De maneira que o amor ou a bondade é tudo o que temos. Memória é tudo o que temos, palavra é tudo o que temos, e as palavras são a forma de podermos, eventualmente, tocar a fímbria do amor e da memória. Veja lá há que tempos estou com este cigarro sem o acender…, isto é insegurança.

Por que é que é inseguro?

Sei lá. Vou contar-lhe um segredo, mas não me importo que fique: eu escrevia com régua, à mão. Se eram coisas que podiam ser vistas por outra pessoa, escrevia com régua, e com hipocrisia. Ainda hoje faço as dedicatórias dos livros assim: uso o Bilhete de Identidade, [a fazer de régua].

Para quê?

Para ficar mais certinho, para não me mostrar em cuecas, para não mostrar a minha intimidade, a irregularidade.

Isso é irregularidade?

Tenho essa mania. O que é que quer?, é o mesmo motivo que nos leva a pentear ou a ajeitar a gravata – não uso gravata. Quando estamos em público não nos apresentarmos da mesma maneira que em privado. Gosto muito de um título do Alexandre O’Neil, que é um bocado a minha relação com as palavras: O Abandono Vigiado. Liberdade condicional. Senão as palavras começam a falar sozinhas. [A gata mia.] O que é que ela está a fazer?

Está a meter-se dentro da minha carteira.

Ela é muito brincalhona. Vai à tua vidinha. É muito gorda.

Enxotei-a. É como se fosse uma pessoa a mexer nas minhas coisas.

Fez bem. É intromissão. As minhas amigas psicanalistas – são duas ou três – diziam que escrever com a régua era expressão de insegurança. Se sou inseguro, por que é que não mostro que sou inseguro?

Já disse pelo menos duas vezes que é inseguro.

Sou. Antes tinha vergonha, mas agora não – são os tais privilégios da idade. Lá está você a contar as vezes…, a psicanalisar! Os psicanalistas contam? Você repara. É perigosa. Porque é observadora.

Se sou isso, vou dizer que reparei que citou várias vezes o Borges e nenhuma o Mallarmé, que, segundo os escritos sobre a sua poesia, lhe é essencial. Nem a Odisseia.

Não é tanto a Odisseia, é mais a Ilíada.

O tema do regresso a casa e da memória, e mesmo do mito de Sísifo, estão na Odisseia. Por isso falo dela.

A Odisseia foi muito marcante. Até onde tenho consciência, os autores essenciais são todos aqueles gregos a quem chamamos Homero, o Eliot, o Rilke e o Borges. A ficção do Borges. Não gosto muito da poesia do Borges, curiosamente.

Estranho, porque Borges é um dos maiores poetas, e porque você é um poeta que quase não lê ficção.

Sinto-me mais consanguíneo com a ficção dele. E há Ruy Belo, Pessoa, Cesário Verde, Cesariny, e há muitas mulheres. Surpreende-me, em versos meus, reconhecer ecos da Sylvia Plath ou da Anna Akhmatova.E a vidinha?

A vidinha, convivo bem com ela.

Estudou Direito porque era o que era possível. Quis ser santo e detective, entre outras coisas. Parece uma vida efabulada. E depois há uma vida que se impõe, com os pés na terra.

São vidas paralelas, convivem perfeitamente uma com a outra.

Como é que aprendeu a fazê-las conviver?

À própria custa!, é a única maneira. Isto é humano, demasiadamente humano. É natural que queiramos evadir-nos quando nos sentimos agarrados pela vida corriqueira. (Hoje estou com uma dor de dentes. Não posso tomar coisas, que tenho medo, estou a caminho da diálise, dá-me cabo dos rins. O dentista radiografou tudo e não tenho lá nada, mas dói-me!, não sou maluco completamente.) Continuando: somos muitos ao mesmo tempo, somos aqueles que sonhamos, somos sobretudo aquilo que tememos e que desejamos.

Ainda não explicou como é que embrulha as várias camadas. A do poeta, a do que vive a vidinha, a do escritor de livros infantis que vai às escolas falar com miúdos e dizer-lhes que nunca quis ser escritor.

Acho que é fácil compatibilizar todos aqueles que nós somos ou vamos sendo. Vivo a tal vida corriqueira sem me comprometer. Consigo ser muito “forex”, como dizem os putos, mas ao mesmo tempo sou muito prático – é o tal espírito jurídico. Ainda agora tive uma guerra com a TMN por causa de umas facturas e acabaram por me indemnizar. Eu gosto de guerras perdidas, tenho mesmo vocação para santo! [gargalhada].

Essa com a TMN, pelos vistos, não foi perdida. E já agora, algum santo em particular?

Não. Queria ser santo, queria ser bom.

Santo Pina.

Há uns versinhos de um miúdo do Centro de Recuperação de Crianças Anormais um nome horrível o Manuel Ferraz, de 12 anos: “Eu quero ser bom, mas não bom de todo o meu coração.” Eu queria ser totalmente bom. Embora hoje já só queira ser bom mas não de todo o meu coração como o Manuel Ferraz.

Pelo meio, exerceu advocacia durante nove anos, que abandonou para ser jornalista.

[De novo a gata] Anda cá Bezinha! Ela é muito simpática, é muito cordial.

Era um advogado de causas perdidas?

Também. As pessoas confiam no advogado a sua liberdade ou a sua fazenda. O mínimo exigível era uma entrega total. Tinha de poder dormir comigo mesmo todas as noites. Podemos dormir com A ou com B, mas connosco temos sempre de dormir. É bom a pessoa dormir tranquilamente, poder não dizer: “Sou um sacana.” Somos o nosso pior juiz. Em relação a amigos que tive na juventude, o Alberto Martins, o Jorge Strecht, digo-lhes muitas vezes: o que é que pensariam das pessoas que são hoje as pessoas que vocês eram quando tinham 20 anos? Andou metido na política? Pouco. No outro dia encontrei no Alfa o Januário Torgal Ferreira, o bispo, “olha o padre Januário!”.

Continua a dizer hoje o que dizia quando tinha 20 anos. As pessoas mudam, mas fundamentalmente os valores são os mesmos. E no seu caso?

Acho que continuo a dizer o mesmo. Mudei muitas coisas. Para ser fiel aos valores fui obrigado a mudar. Por exemplo, a seguir ao 25 de Abril, cheguei a ser candidato a deputado pelo MES e pela UEDS. Fiz sempre questão de não ser militante de coisas nenhuma; como se costuma dizer em linguagem popular, eu mijo fora do penico. Esse militante foi o homem que nunca quis ser. Vamos sendo outros; alguns por imperatividade da vida biológica (não quer tomar nada?), outros por imperatividade afectiva, outros moral, e nesse grande painel de identidades, o militante é perfeitamente dispensável.

Aproximou-se da política numa altura em que em Portugal toda a gente fazia política.

Foi a seguir ao 25 de Abril. Acreditei e envolvi-me mesmo. Eu não sou muito hipócrita, sou o suficiente para conseguir viver em sociedade. Acreditei que vinha aí o socialismo, que podia ser uma forma de felicidade colectiva. Eu andava à procura de casa, estava para nascer a minha filha mais nova, a Sara. O obstetra dela, que era um famoso professor da Faculdade de Medicina, nas consultas só falava nos comunistas, estava preocupado que lhe levassem as pratas. As pessoas fugiram em debandada final como se fossem umas baratas, e abandonavam coisas que vendiam por tuta e meia. Estava à venda uma casa que eu cobiçava imenso, por 600 contos, que era muitíssimo barato. Sabe por que é que não a comprei? Porquê?

Estava sinceramente convencido de que vinha aí o socialismo e que não precisava de comprar casa! A militância não foi só por causa de l’air du temps. Eu acreditava mesmo no poder popular. Tentei ser candidato duas vezes. A proximidade com a militância e com a política partidária revelou-me aspectos da natureza humana e das próprias organizações partidárias revoltantes. De maneira que me afastei completamente. Hoje tenho até uma hostilidade em relação à política.

Foi em 74 que editou o seu primeiro livro. O título é: Ainda não É o Princípio nem o Fim do Mundo, Calma, É apenas Um Pouco Tarde.

Foi nas vésperas da revolução, acho que o livro saiu mesmo em Abril.

É um título profético, de certa maneira.

Tinha editado um livro infantil em Dezembro de 73, chamava-se O País de Pessoas de Pernas para o Ar.

Sei que não gosta da designação, mas é um dos autores mais conceituados de literatura infantil.

Não faço distinção entre a literatura e a poesia infantil. Tenho exactamente a mesma atitude. O Paul Valéry diz que o primeiro verso nos é dado e os outros têm de ser conquistados. Aquele que me é dado nunca me é dado como um verso infantil para crianças ou um poema para os adultos; é-me simplesmente dado. Depois, os versos seguintes, conquistados, têm alguma penosidade. O próprio texto é que se vai escrevendo como texto, eventualmente legível ou publicável como livro para crianças ou como poesia para adultos.

Lembra-se muitas vezes da criança que era?

Recordo-me. Mas de uma forma engraçada: como se essa criança nunca tivesse existido, a não ser fora da minha lembrança.

Por fim, os gatos. Por que é importante ter esta gataria perto de si?

Dou-me bem com os gatos porque eles, os animais em geral, estão muito próximos do Ser. Como estão alguns personagens literários. Relaciono-me com eles com alguma melancolia, porque “quem me dera ter a tua inconsciência, e a consciência dela” – como escreve Pessoa.

(Não quer tomar nada, um doce? Um bolo da minha sogra, bolo da mamã.)

Artigo publicado a 26 Abril de 2009, na Pública

in http://www.publico.pt/

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“Eu sei lá para quem é que escrevo!”
Palavras de Manuel António Pina, na abertura da XVIII Conferência de Literatura Infantil da Gulbenkian, que ontem se iniciou e já hoje termina. Isto porque o tema que ali se discutia era o de literatura “para” crianças.

O autor lembrou a etimologia da palavra “cryamça”, com o significado de “ser humano”, mostrou-se convencido de que a “literatura transforma” e falou na leitura como “educação para a liberdade, não no sentido político, mas de identidade”.
Contou, com a sua graça discreta e humor contido, como foi chamado à PIDE, em Dezembro de 1973, por ter “desrespeitado a religião católica”. Tinha escrito o livro O Menino Jesus não Quer Ser Deus.
Disse ainda que à entrada de qualquer livro há um pressuposto dirigido ao leitor: “Para aqui entrares, tens de fazer de conta que acreditas.” Se Manuel António Pina não sabe para quem escreve, Letra pequena online sabe. Escreve para todos. Na sessão inaugural, o ministro da Cultura, Pinto Ribeiro — antes de partir para Vila do Conde (onde iria destacar o papel da requalificação patrimonial como factor de qualificação das pessoas) —, tinha afirmado acreditar que “ler é essencial na construção da identidade e liberdade” e que através da leitura se aprende “a lidar com os problemas do mundo”, sejam a morte, o ciúme ou “um pai furioso”.
Sugeriu a todos os presentes que lessem com e para as crianças sem esconderem os problemas reais que têm. Porque, disse, “o que é constitutivo da vida é ser problemático — individual e colectivamente”.

16 de Dezembro de 2008
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O escritor Manuel António Pina ganhou o Prémio Camões. E, de repente, eis-me reconciliado com a justiça deste tempo. Poeta enorme, escritor incomparável, camarada indomável, jornalista e cronista de estalo, o Pina tem a justa recompensa em vida por um percurso original, digno e desafiador. Para mim, hoje também é dia de festa (além do mais ele também cultiva o seu lado felino). Brindo a isto numa altura em que Portugal, pelos vistos, apenas se avalia em dívida ou em Dublin. Ou à volta de um qualquer «pentelho». Deixo-vos, entretanto, um texto que publiquei na VISÃO em Novembro de 2002, a propósito do lançamento de um livro sobre o Porto escrito pelo Pina e ilustrado por Jaime Isidoro. “PORTO, MODO DE SER
Porque há cidades que nos vestem por dentro, Manuel António Pina calcorreou um território onde cabem todos os percursos da alma. Um dia, bem antes de o ser, o escritor perdeu a infância. Para trás, jardins e árvores de fruto, um mundo à mão para semear os sonhos grandes de dez réis de gente. Triste, atravessou então «como um náufrago» a ponte imensa de um rio desconhecido e o coração estranhou a distância, a cama e o quarto, frios e solitários. Aos poucos, porém, tacteou sobre os escombros da memória, um território novo. Cresceu. Ergueu-se. E atravessando os dias virados do avesso, descobriu a cidade e ela descobriu-o a ele.
Muito mais do que ruas, casas e pessoas aconchegaram-lhe o corpo e a alma. E o escritor, sempre poeta, viu então, aos 17 anos, o seu rosto reflectido no sombrio espelho da cidade.
Desde essa altura, Manuel António Pina veste o Porto pelo lado de dentro, cidade do seu inteiro tamanho, como ele próprio diz. É verdade: não se escolhe o sítio onde se nasce (Sabugal, no caso), mas, aos 59 anos, ele sente que o lugar a que se pertence, esse sim, é uma guinada do coração.
«A minha relação com o Porto é do tipo conjugal, um acto de conhecimento. É como dois corpos que se foram conformando um com o outro, uma relação tranquila, serena. Já nada se receia, já nada se espera, mas está-se disponível para tudo. A felicidade é isto», diz o autor, a propósito de Porto, Modo de Dizer (edições Asa), bebendo nos estóicos da Grécia Antiga. Um livro que é uma travessia dos sentidos à boleia de nove crónicas quase fundidas numa. Uma cidade de palavras que o pintor Jaime Isidoro vestiu à medida da poesia que emana da prosa. O Porto posto a jeito para folhetos turísticos não mora aqui. O Porto do granito e da Ribeira a metro quadrado de prosa não tem lugar neste retrato do escritor enquanto cidade que o fez. No Porto de Manuel António Pina moram ruas, aromas, cores, sensações e personagens. Modos seus de dizer sentimentos, uma geografia de afectos impossível de mostrar a quem vem de fora por serem pertença única de silêncios e solidões. «Andar no Porto é como habitar o meu próprio corpo», diz. Talvez por isso se descubram, nas páginas deste livro, as interrogações sobre a natureza da relação do habitante… habitado pela cidade. «Coisa nunca acabada, até porque estamos sempre a fazer memória.» Com ele caminham todas as cidades da cidade. Um plátano de um certo jardim, o último eléctrico de uma madrugada, uma mala com livros, noites intermináveis, dias de horror e aflição, mas exaltações, também. Rilke, Elliot, Eugénio de Andrade. «E todas as coisas que não posso contar.» O escritor fecha os olhos e vê-se a si próprio. «Em certas noites desoladas, sou todas as prostitutas da Rua da Alegria e do Marquês (…), outras vezes o meu sangue ruge como um estádio de futebol cheio ou, em vasos de plástico, nele desmesuradamente florescem as sardinheiras e roseiras». Leva-nos ao São João pelo braço e à Lello pelos sentidos, qual «paraíso perdido ». Descobre as histórias por detrás da história com Germano Silva, decifra o remanso e os prazeres do Porto de Agosto, urbe sem pressas. Fala da legião dos sem-voz e sem-notícia. Um universo de cerzideiras, caldeireiros, latoeiros, costureiras, engraxadores, guardadores de retretes, limpa-chaminés, amoladores, «furtivos rifeiros das empresas que fornecem a desencantados escriturários e tristes telefonistas modestas doses semanais de sonho», biscateiros de todas as artes, enfim, artesãos do quotidiano da cidade que ainda resiste à cirurgia plástica da modernidade. O lado B do Porto, cidade vinil. Mais de três dezenas de obras de poesia, crónica, ensaio e literatura infantil, a par de uma vintena de peças de teatro, moldaram o escritor. E o Porto, aqui também, serviu de esboço a muitos imaginários de carne e osso, a costurar-lhe as palavras, a recortar o homem. «Só conheço mais duas cidades com as quais talvez conseguisse manter uma relação profunda: Berlim, antes da queda do muro, e Quioto, no Japão.» Vá lá, com esforço «talvez também habitasse algumas das muitas cidades que moram em Nova Iorque… Paris é que não. Tem uma roupa muito grande para mim.» Manuel António Pina amou muitas cidades e tem um coração «cheio de reflexos de vidraças, de neves desfeitas, de rostos, de rumores». Mas em nenhum lugar senão no Porto «poderia morrer. E nenhum outro, quando eu morrer, morrerá comigo», confessa. Já se sabe: uma cidade é muito mais do que os nossos olhos dizem.
Muito mais do que a pele entranhou. Tudo aquilo que o escritor sabe de si e também o que não sabe «está preso a estas pedras, a estas ruas, a estas fachadas».
Um Porto sentido, vivido, aturado. «Se o Porto fosse uma mulher, diria que não é uma mulher fácil. É preciso descobri-la, entendê-la. Já andei zangado com ela, mas isso passou, afinal já andamos nisto há mais de 40 anos… É uma relação feliz construída durante esse tempo, mas onde a palavra fidelidade não tem lugar porque não existe compromisso.» O Porto é, talvez, este modo de dizer… Dizendo-nos.” Por Miguel Carvalho in http://adevidacomedia.wordpress.com/
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