UM VERSO É SEMPRE DEMASIADO EXÌGUO
Um verso é sempre demasiado exíguo
para conter o mar. Quantos milhões de milénios levou
a Terra para fracturar continentes e arrefecer os oceanos
incandescentes da lava primordial?
É sempre o mar da Foz do Douro que
me arrasta para esse inacessível tempo sem medida
quando revejo as rochas e a espuma
ou reencontro o Café do Molhe
onde o Pina evocou o desencanto da utopia
na ambulante utilidade de umas certas pernas. Podemos
sair para um passeio à Cantareira
levados pelo Eugénio, ainda
antes de cantar as palmeiras do Passeio Alegre
altas como marinheiros de Homero.
Seguiremos até ao Forte de S. João Baptista
que viu nos invernos a maré assolar os
passantes desprevenidos e terrestres viaturas. E
o tempo do mar deste século
leva-me para as antiquíssimas manhãs
de nevoeiro, onde não surgiu o Desejado, mas
começou a vida deste Forte. Nenhum Alcácer-Quibir
turvou nunca a indestrutível existência destas águas
que qualquer verso é demasiado exíguo para conter. →
16.
INDESTRUTÍVEL
Não precisa de respiração assistida
para o ar lhe circular entre os vocábulos. Nem
jaz inerte e horizontal numa febre letárgica
que lhe impõe caminhos
de finitude. Ele procura o princípio renovado
em todos os declives e espantos. Só a febre de um ardor
o consome, aquele ardor que demanda o sentido novo
no devir do tempo. Novas formas o engenham
e transmutam mas ele é indestrutível
na sua inútil vocação de poema. →
15.
BONJARDIM
Vindo do Marquês, o autocarro
chiava na curva estreita, soltando
os seus vapores de gasóleo, e
num portal surgia um gato pardo
para o qual me inclinei, sabendo
que fugiria ao contacto
da minha mão, ou apenas ao
esboço de carícia, como fazem
os gatos, tão fugidios na presença
de estranhos. Mas o animal no
instante do recuo, aceitou o
deslizar dos meus dedos,
em troca de amáveis energias. E
uma longa saudade subiu-me pelo
braço, no arquear festivo
daquele pequeno tigre. →
14.
PENÉLOPE
Encontrava-a aos domingos
com a teia de crochet, perto
do estádio. Ulisses regressava
a Ítaca, no fim de mais uma
jornada de águias, dragões
e outros monstros. Argos
no banco de trás, abanava a cauda
para não morrer de velho. →
13.
ÁRIA
É belo o tempo de Inverno,
no silêncio, a lenha húmida
das maternas canções da chuva.
Na lentidão de Janeiro
fica mais longe a morte. As aves
habitam nos beirais
como príncipes destronados. →
12.
Os livros duram séculos e
falam da melodia da chuva →
11.
O tempo que passei fechado sem
nenhum leitor, justificou ser
imolado pelas traças. →
10.
Nasce
para a mudez, mas
como a música, respira
por sons. →
9.
a pulsação
é teia de luas contínuas
e cegueiras vivas de encarar o sol. →
8.
Poluída e rútila
é a beleza de um verso →
7.
Mesmo com pássaros ao desabrigo
as árvores ainda cumprem
um desígnio vertical. O tronco cingido →
6.
DOIS CIMBALINOS ESCALDADOS
Não sei, meu amigo, o que
irradiava mais calor, se
a chávena escaldada, se
o cimbalino fervente, se
as conversas sobre livros de poesia
que nesse tempo, ainda
acreditávamos ser a maior
razão →
5.
SALA PROVISÓRIA
Nunca se sabe
quando estamos num lugar
pela última vez. Numa casa
que vai ser demolida, numa sala
provisória que vai encerrar, num velho
café que mudará de ramo, como
página virada jamais reaberta, como
canção demasiado gasta, como
abraço tornado irrepetível, numa
porta a que não voltaremos. →
4.
MIRAMAR
Acender um cigarro na praia, proteger
o difícil estertor da pequena chama. Anular
o vento na manga do teu casaco. Reter
preso entre os dedos o princípio breve
dessa efêmera combustão. →
3.
Não me tragas um poema
de sentidos inócuos, nem engenharias gráficas a ocupar →
2.
Café Estrela D’Ouro
Na Rua da Fábrica, perto
de livrarias e simpáticos alfarrabistas,
redigíamos panfes pela libertação →
1.
Faz-me frio este Outono
a boiar sobre o corpo,
a poesia sem ancas,
a música passada
por ovo e pão ralado, →
Inês Lourenço nasceu no Porto em 1942. É licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Estudos Portugueses) pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Trabalhou nos CTT e no Ensino Secundário.
Publicou os seguintes livros de poesia: Cicatriz 100%, Editora das Mulheres, Lisboa, 1980,.(prefácio de Maria Isabel Barreno);Retinografias, idem, Lisboa, 1986; Os Solistas, Limiar, Porto, 1994; Teoria da Imunidade, Felício & Cabral, Porto, 1996; Um Quarto com Cidades ao Fundo – poesia reunida (1980-2000) incluindo mais vinte inéditos, Quasi Edições, Vila Nova de Famalicão, 2000. A Enganosa Respiração da Manhã, Asa Editores, Porto, 2002.
Principais colaborações em Antologias: Antologia de Poesia Contemporânea, O Poeta e a Cidade, organizada por Eugénio de Andrade, Campo das Letras, Porto, 1996, 3ª edição, Asa Ed., Porto, 2001; Aproximações a Eugénio de Andrade, Asa Ed., Porto, 2000, 2ª edição, 2001; Vozes e Olhares no Feminino, Ed. Afrontamento, Porto, 2000; Das Tripas ao Coração, Antologia trilingue (português, francês e inglês), Campo das Letras, Porto, 2001; Homenagem a Júlio / Saúl Dias, Quasi Ed., V. N. Famalicão, 2001;Ao Porto, Colectânea de Poesia sobre o Porto, Publicações D. Quixote, Lisboa, 2001; O Futuro em Anos-Luz – 100 anos – 100 poetas – 100 poemas, Quasi Ed., V. N. Famalicão, 2001; Assinar a Pele – Antologia de poesia contemporânea sobre gatos, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001; EnCantada Coimbra – Antologia de poesia sobre Coimbra, D. Quixote, Lisboa, 2003.
Colaborou com poesia em diversas publicações portuguesas, como: JL-Jornal De Letras, Artes e Ideias, Cadernos de Serrúbia, Colóquio-Letras, etc. e também em revistas de poesia de Espanha, Itália e França (Página – cien años de poesia portuguesa, Tenerife, – Ánfora Nova-Mujer y Poesía, Córdoba, –Hablar/Falar de Poesia, Badajoz, – Bolletario 4, Modena, – Europe, Paris, 2000, etc.) com poemas que foram traduzidos nas respectivas línguas.
Coordenou e editou desde 1987, os Cadernos de Poesia – Hífen, com 13 números editados, na sua maioria, temáticos, publicação de carácter inter-geracional, em que têm participado, com colaborações inéditas, grande parte dos poetas portugueses actuais, bem como poetas de outras línguas.
Participou em diversos eventos dedicados à Poesia, entre os quais destaca: Bibliothéque Faidherbe, Paris, 2000; Encontros com Poetas, Fundação Eugénio de Andrade, 2000; Vozes e Olhares no Feminino, Porto 2001, Biblioteca Almeida Garrett, com Teolinda Gersão e Isabel Allegro de Magalhães, 2001; 4º Encontro Internacional de Poetas, Coimbra, Biblioteca Joanina, 2001.
Sito in http://alfarrabio.di.uminho.pt/
Outras moradas: http://logrosconsentidos.blogspot.pt/ e http://vidainvoluntaria.blogspot.pt/