MORTE ÀS PALAVRAS
Tantas vezes que me apetece
matar as palavras ou
ficar quieta num canto à espera
que elas me matem.
Assassiná-las à paulada
é que era bom,
arrastá-las pelos cabelos,
arrancar-lhes os olhos,
as tripas, as guelras,
uma coisa de sangue e entranhas,
desentranhá-las de mim.
Tantas vezes me apetece
romper com as palavras,
deixar de ser servil e
pô-las ao meu serviço
e cuspir-lhes nos olhos
um desaforo qualquer,
dizer-lhes bem alto
para os vizinhos ouvirem:
“Ide para a frase que vos pariu”
In “Geografias Dispersas”
12.
COMBOIO DA MEIA NOITE
O velho
Quando entardecia
um pombo pousava-lhe num ombro
e vinha comer-lhe à mão.
Naquela hora ele acreditava
que o pombo era o
seu irmão morto há tantos anos
na explosão da mina onde trabalhava,
conversavam então de coisas
antigas, de brinquedos partidos
esquecidos no chão
da casa entretanto demolida
onde cresceu depois
o hipermercado da vila.
Acabadas as migalhas o pombo
tornava à sua condição de pássaro
e desaparecia na sombra de um
beiral. O velho permanecia
na sua condição de velho,
falando só e atirando
migalhas secas ao chão…
in Circulação Transversa
11.
Se me perguntas sobre o mundo
Dir-te-ei das ruas,
de todos os lugares onde passei,
da cor das árvores,
de todos os cheiros da cidade,
dos lugares perdidos onde amei,
do odor dos frutos que provei.
Mas pergunta-me antes
das dores no peito,
do aperto desusado e imperfeito,
do lugar vazio que deixaste no meu corpo,
do abraço incumprido,
do meu coração desfeito. →
10.
Chove.
Nem posso acreditar
como chove a minha cidade,
chove em mim
e chove sobre todos…
nem posso acreditar
o quanto chove esta cidade…
Se ao menos chovesse anjos,
ou estrelas,
ou almas…
Mas nada.
Nada mais que a fria chuva
que me molha
e que molha a minha cidade
em que chove, chove, chove.
Nem posso acreditar
o quanto a minha cidade chove. […]
in “Sombras de Noite” →
9.
Comboio da meia-noite
Tergiversações
Uma rua sem casas
ou o teu olhar no meu decote
Uma lua enevoada
ou a tua mão no meu peito
Um rio impoluto e manso
ou o teu respirar no meu cabelo
Uma nuvem prenunciando a chuva
ou a tua língua nos meus dentes
Um alvoraçar de pássaros rumando ao sul
ou todo tu dentro de mim
……………………………………………………………………………………….
Agora que tornamos a ser dois
que lugar haverá dentro de ti
onde eu possa permanecer? →
8.
Uma nuvem anuncia-se ameaçando o azul.
Em breve a liberdade vai ser
só cinzento. →
7.
Completa-me o sopro de vida,
carne,
onde aprofundo o meu corpo, →
6.
Deste lado da sombra
o mundo parece menos pálido. →
5.
Vem visitar comigo o céu, →
4.
Esta noite vou-te ler
um poema que escrevi,
não fala da lua cheia
nem de nada que já vi. →
3.
Um dia acordo e
o teu beijo
é a neve no olhar →
2.
Se nos amassemos
pela manhã
ou na cadência louca
do entardecer, →
1.
Escrevo-te adeus
mas não parto. →
Alexandra Malheiro nasceu em 1972, no Porto. É licenciada em Medicina pela Universidade do Porto e especialista em Medicina Interna.
É autora de 5 livros de poemas: “Sombras de Noite” (Elefante Editores -2004), “Circulação Transversa” (Corpos Editora – 2005), “A urgência das Palavras” (Edições Ecopy -2008), “Luz Vertical” (Edita-Me Editora – 2009) com prefácio de Pedro Abrunhosa e ilustrações de Miguel Ministro e “Geografias Dispersas” (Edita-Me Editora – 2011).
Participou, também, nas antologias “Poesia SMS” (Elefante Editores – 2003), “Os dias do Amor” (Ministério dos Livros Editores – 2009), “Divina Música” – Antologia comemorativa dos 25 anos do Conservatório de Viseu, organizada por Amadeu Baptista e “Só à noite os gatos são pardos” (ambos de 2009).