A camélia é a flor à imagem de uma cidade considerada, no séc. XIX, pelos que a visitavam, romântica (apesar da tuberculose, do tifo, da peste bubónica e das maleitas sociais que atormentavam as gentes dos lugares onde as japoneiras não medravam). →
37. Dizia meu pai (homem experiente): «Desde que vi um boi trepar por um pinheiro acima, já não me admiro de nada.» Assim é. Neste país, o que pode ainda causar espanto? Mas, de repente, assalta-nos o espanto, quando o JN noticiou que alguém anda a fazer furos nos metrosideros da Avenida de Montevideu, talvez com o objectivo de os destruir, injectando-lhe um qualquer químico. →
36. Agitaram-se as redes sociais, com a notícia: «antiga “ilha” do Porto renasce como boutique aparthotel tecnológico e de design». O Bairro do Silva, através de cuidada reabilitação, transformara-se no Village by BOA, «pensado como refúgio», semelhante a um hotel de 5 estrelas. →
35. No livro “Discurso Sobre a Cidade”, Daniel Filipe, inspirado poeta, escreveu: «Que sabeis vós das coisas importantes, que se não medem em termos de letras, cupões, cheques, empréstimos internos?» É isso. Há quem só veja importância nas coisas materiais, preferencialmente financeiras ou em termos de poder. Apetecíveis. →
34. Com a peste que nos assolou à falsa-fé, descurei a minha obrigação de vigiar o que se passa no Porto. Desta forma, quando recebi a notícia, fiquei siderado: o “Chien qui Fume” fechou. E mais: que o famoso, popular e extravagante símbolo deste restaurante da Rua do Almada (a escultura do cão a fumar cachimbo), estava à venda num antiquário. →
33. Esta cidade não pára de me surpreender. E ainda bem, já que o inesperado, num mundo demasiado uniforme, global e conformado, é o sal e o piri-piri do quotidiano. Digo quando as supresas são positivas. Assim, nesta cidade, ainda encontro sítios e aspectos que não conhecia. E por outro lado, surgem notícias de acontecimentos que nos fazem palpitar de emoção. Que nos demonstram o valor da memória como antídoto contra o esquecimento.
Foi o caso da reabertura do Café Ceuta, contra as expectativas dos profetas da desgraça, dois anos após o encerramento e a sua morte antecipada. Para nosso prazer e maior esperança na retoma e reabilitação da vida social do Burgo. Até o coração me bateu sobressaltado por tudo quanto, de repente, em evocação, me caiu em cima. →
32. Defendendo que cada um viva conforme as suas convicções, entendo os símbolos religiosos como valores inerentes à personalidade desta cidade. →
31. Nos tempos da Outra Senhora havia em Coimbrões um tasco chamado “O Clarão do Sabugo”. Nele parava o povo. Reformados pobres (como o Aníbal Passarinho), estivadores, pedreiros, operários, lavradores (dos campos em redor), etc. Copofónios. Um dia, o dono da loja resolveu experienciar os domínios da “Nouvelle Cuisine” e, para isso, foi ao pinhal próximo e caçou a maior ratazana das que ali havia, bem alimentadas. Ratazana campestre completamente «vegan». →
30. Por acaso, habito um prédio situado sob a rota dos aviões que demandam o aeroporto do Porto (a pista ficará numa linha recta na direcção da minha casa). Durante anos, ver passar aviões teve pouca relevância. Era um de vez em quando (vindos do Sul, os do Norte não os vejo). →
29. Um sobrevivente da cidade que crescia nas ruas evocou-me o bairro da sua infância, na memória da alma tripeira. Das Escadas dos Guindais recordou os patamares onde brincava com arco e gancheta, ao «dá-me lume», à cabra cega, à macaca e ao berlinde. As portas e janelas abertas e a roupa a secar pendurada dos peitoris. →
28. A qualidade do poder económico, social e cultural é-lhe concedida na relação com o chamado Bem Comum. O poder indiferente aos princípios cívicos da sociedade, desqualifica-se.
Li no JN que a “Confeitaria Serrana é loja histórica mas tem acção de despejo” e que o dono do imóvel quer o espaço livre para «construir um negócio sustentável, aberto a todos os portuenses e viajantes». Como se tais atributos não correspondessem àquele «tesouro escondido na R. do Loureiro»! (JN, 19.1.15), criado pelo Arq. Francisco Oliveira Ferreira para a Ourivesaria Cunha, inaugurada em 1913. Misturando estilos, do Luís XVI à arte nova, com decoração de José Oliveira Ferreira e pintura de Acácio Lino, associa ao requinte os artigos que confecciona, com destaque para as bolas de Berlim. →
27. Se querem que lhes diga francamente, já estou a ficar farto de ouvir (e ler) as catilinárias dos profetas da desgraça a quem recentemente se acrescentaram os arautos do pânico. Juntos, constituem parelha de respeito para nos azedarem ainda mais os dias e incutirem, nos ânimos sensíveis, receios, temores, desânimos acrescidos aos naturalmente derivados destes tempos ensombrados pelo vírus que de longe nos veio estragar o estrugido e infernizar o quotidiano. →
26. Pelo meu bairro aéreo (uma torre, com setenta habitações, é um bairro), desde que nele moro, já passaram meia dúzia de músicos. Aprendizes. Uns melhores, no limiar da técnica, outros a aprenderem-na, sobretudo pianistas. Mas mesmo nos casos do matraquear, nunca me incomodaram. Davam a nota de presença viva num ambiente hermético. →
25. O país, fora os que queriam praia, enfrenta a tragédia com maior categoria do que a de alguns senhores do mundo. E a cidade – longe do Algarve – correspondia ao confinamento. Civilizada e solidariamente. Apareceram dezenas de pessoas oferecendo-se para fazer as compras de vizinhos doentes, idosos ou inválidos. E também para passear animais, ajudar com crianças e serviços domésticos, desinfectar espaços comuns e elevadores, etc. A cadeia interactiva ganhava forma diariamente. →
24. Mantenho viva a recordação das Galerias Lumière. E, em primeiro lugar, do cinema. Dos cinemas (que lhe deram nome) e dos filmes que neles vi. Tantos, que nem recordo os nomes. Mas ficará para sempre guardada a imagem da comodidade e do encontro com os cinéfilos meus amigos. →
23. A jornalista Mariana, que coscuvilha tudo, alarmou-me: «Apesar do “selo” de loja histórica a Serrana continua em risco.» O alarme funcionou por dois motivos. Um, gustativo: a Serrana fabrica as melhores Bolas de Berlim do Burgo. →
22. No Largo do Moinho de Vento, o Snr. António Farinheiro afixou na rede do estabelecimento: «Fechou a loja de cereais mais antiga da cidade do Porto». Segundo o Público (7.6.19) tinha 66 anos.
21. Como é possível numa cidade à escala humana, morrer alguém e não sabermos? Foi o caso do meu amigo Zé Ferrugem. Andava desconfiado de não o ver e fiquei inquieto. Há dias, disseram-me que morrera. Confirmei: era verdade. →
20. Vozes. Límpidas, vindas de antanho. Estridentes, veladas ou fortes como do cantor de ópera, mas sempre cristalinas. «Prístinas», lhes chamava Alfredo da Cunha, por serem do povo. Das funduras do tempo dos pregões ou dos bandos de rua anunciando as novidades. →
19. Mas eram outros. Da infância que nos marca, com doçura, ou nos amarfanha para sempre. A minha abarcou as duas, mas do lado mais doce ficaram os comboios. Para a praia. →
18. Passei pela Cadeia da Relação e vi um pano onde escreveram: «Nasci na Vitória, posso morrer na Vitória?» Isto assim, nem mais, nem menos. E disseram-me que dísticos semelhantes vão apelando à permanência dos habitantes nos seus locais de origem. →
17. Um amigo meu (cito Teixeira Gomes) «pessoa delicada e culta e muito amigo das coisas da sua terra», com a vantagem de correr mundo, escreveu-me sobre o assunto de que muito se fala: o excesso de turismo. →
16. Aí por 1980, num seminário sobre Património, no Funchal, expus o significado social que caracterizava as ilhas e bairros operários do Porto. Defendi que o projecto SAAL, que pretendia reabilitá-los, seria a solução mais justa para a sua qualificação. →
15. Ao longo dos catorze anos de conversas de fim de tarde, entre a Câmara , a Rua da Picaria e, a seguir , no caminho da Foz falávamos , por vazes , de Lampedusa e do Leopardo. Quero dizer: do Príncipe D. Fabrício , cuja presença se pressentia em Miguel Veiga, na sua intensa percepção da aventura exaltante e misteriosa a que costumamos chamar vida. Vendo bem , em corpo inteiro, o Príncipe era ele. →
14. No dia 12 deste Agosto sobressaltado, o Porto perdeu um ícone: a Adega S. Martinho. Não por inutilidade mas porque, simplesmente, as mudanças no tecido da cidade não se compadecem com os símbolos de uma tradição cujo sentido era diferente do nosso. →
13. Nos tempos homéricos da minha infância na Rua do Correio janelava-se. Janelava toda a gente do lado em que morava (do outro só havia escritórios), conjugando o verbo janelar, que significava «passar a vida à janela» – o que não era bem o caso. →
12. O Duque, curador das Alminhas da Ponte, já me tinha falado disto. Que as promessas de velas de cera tinham aumentado e nas vésperas dos jogos grandes do FCP lá ia muita gente acendê-las. →
11. Artesanalmente, por carta ou telefone, na rua, esquina, loja, exposição, etc., a minha rede social funciona. E traz notícias frescas, boas e más. Desta vez más. →
10. Muitos duvidam da capacidade do Burgo para absorver tanto turista. Que se descaracteriza, perde identidade, degrada-se. O fim do mundo. Que qualquer dia há mais estranhos que tripeiros nas ruas. →
9. Quem pode resistir à nostalgia? →
8. Grupo Recreativo e Desportivo de Aldoar →
7. Minha linda freguesia →
6. Quem acode às Festas →
5. Estou de acordo →
4. Entrar no Sá da Bandeira é regressar ao paraíso perdido da minha infância.
3. A Marca São João →
2. Ser Portuense →
1. O Regresso das dificuldades →
Hélder Pacheco: natural da Vitória, Porto. Professor de História Social e cultural do Porto, Quadro Técnico do Ministério da Educação (1960/1993). Investigador das culturas populares e escritor. Cronista do Jornal de Notícias e da Revista “Sítios e Memórias”. Autor de ensaios e estudos sobre Património Cultural editados em jornais e revistas de todo o país.
Sito in http://www.wook.pt