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Domingos da Mota (1946)

Domingos da Mota (1946)

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35.
DEZEMBRO

Era Dezembro. O natal esperado
(não havia então ecografia),
poderia ser de um rapaz
ou de uma rapariga

(por meninos e meninas eram
tratadas as crianças que nasciam
em berços de ouro).
E nasceu um rapaz. Gritou,

chorou, foi parido numa casa
humílima, que não era um presépio,
mas ouvia-se o cantar dos galos,
o ladrar dos cães, o mugir

das vacas nos currais.
Era Dezembro, mês propício
a partos difíceis,
naturais. 

34.
TEM COROA

Aparenta ser um rei,
tem coroa, é Corona,
mas de que reino não sei,
o vírus que reis destrona

e que infecta presidentes,
soldados e generais,
e com o freio nos dentes
trata todos como iguais,

pobres, ricos, poderosos,
ignorantes e cultos,
previdentes, desastrosos
idiotas resolutos

que com grande impertinência
mandam postas de pescada
e dizem, com insistência,
que o vírus não vale nada.

Fosse um novo cão de fila
que ferrasse o inimigo,
mas ameaça, à má-fila,
qualquer um: eis o perigo! 

33.
Olho por olho?

Pode por dentro do olho
do polícia haver outro olho
que não seja o olho lícito,
mas que seja um olho lírico?
Pode por dentro do olho
do juiz haver outro olho
que não seja fleumático,
mas transgressor e lunático?
Pode o velho burocrata
com as mãos no formulário
ter um olho abstracto
absorto e visionário?
E o olho do poeta
que muitos dizem ser lírico
descentrado e surreal
pode ser hiper-real?

in Pequeno tratado das sombras, edição Busílis, dezembro de 2018, página 37

32.
Oração

Ouro da noite
pó das estrelas
chuva de cinzas
à flor da pele
matéria negra
matéria fria
língua de fogo

rogai por nós

in Pequeno tratado das sombras, edição Busílis, dezembro de 2018, página 66

31.
Sem erros de paralaxe

De anjo só tinha a cara;
as asas, quando as abria,
pareciam de ave rara,
uma ave que subia
e descia quase a pique
e com tal velocidade,
mais veloz que o Sputnik,
essa outrora novidade
das que atravessam os céus
e percorrem os espaços
(sem serem anjos nem deuses),
mas que desdobram os braços
em busca doutras galáxias,
sem erros de paralaxe. 

30.
Futurou Fernando Pessoa
em Durban ou em Lisboa
que os ossos dos seus heterónimos
seriam depositados nos Jerónimos? 

29.
Senhora da pós-verdade,
dizei-me, porque mentis
com a naturalidade
dum Pinóquio sem nariz 

27.
O seu umbigo é o centro
do mundo    do universo
visto por fora ou por dentro
do direito       ou do avesso: 

26.
Não sei como dizê-lo, mas se vejo
naquela indiferença um não sei quê 

25.
Vira a noite
do avesso: a insónia
desalmada esmiúça 

24.
O offshore da minha rua é o mais secreto offshore da minha aldeia, 

23.
Soneto de Natal

Dissesse do Natal o muito que
se olha sem se ver, aquando e onde
o outro é transparente, como se
fosse um corpo invisível que se esconde,

alheio à roda-viva de quem estuga
o passo pra atingir o desejado
prazer de abraçar a própria fuga,
desprezando os caídos a seu lado;

dissesse do Natal o que é banido,
varrido pra debaixo do tapete,
o muito que apesar de escondido,
não deixa de pungir, como um ferrete,

como são e serão os sem-abrigo,
com a sopa dos pobres, por presigo. 

22.
Onde se lê passado, deve ler-se presente.
Onde se lê presente, deve ler-se futuro

21.
Arrastado na fuga para a vala
comum que aprofunda a crueldade 

20.
Desaba o sol, o silêncio,
a dor no coração da terra
comovida; na levada 

19.
Ofício de verão –
a sede abrasa o canto
insurrecto das cigarras 

18.
Perdi a veia, ou melhor, se a tive,
alguma vez teria de a perder 

17.
Mesmo sem fé o coração se deita
a sondar o além, o que há-de vir
na época precisa da colheita 

16.
Acendeste o silêncio,
esse silêncio feito
de terra e cal, de erva 

15.
Usarei a palavra que me resta,
por muito que indicie algum desgaste, 

14.
Colho as flores negras do tempo
que murcharam no jardim; 

13.
Por tardia que seja, é sempre cedo
que se faz a viagem sem regresso, 

12.
Oiro da noite
pó das estrelas
chuva de cinzas 

11.
A voz que te nomeia
a boca que te chama
a língua que se ateia
não segreda – clama 

10.
Olhar as rugas, ver
as cicatrizes que o rosto
desenrola sulco a sulco: 

9.
Poema para não ler
pois que a cegueira o cobre
com a nudez a valer
e mesmo nu se desdobra 

8.
Engolir cobras, lagartos,
elefantes, crocodilos,
e calar, mesmo que fartos
de bramidos e sibilos 

7.
Não acodem as palavras
tão afastadas de mim 

6.
Quando dizes
que sim, que não,
que talvez,

5.
não sentes
a língua a dobrar-se,
não vês? 

4.
Não vou somar aquilo que perdi,
sequer subtrair o que ganhei 

3.
Vós que suportais a miséria imposta
por estes que outras coisas prometeram 

2.
Dado o dito por não dito
(irrevogável questão),
que pensar do sobredito
e do seu golpe de mão? 

1.
Este pov’assim
Aguenta tudo
Debita o banqueiro
E dobra o ministro
Um com ar cimeiro
Outro d’ar sinistro 

Domingos da Mota nasceu a 15 de Dezembro de 1946, em Cedrim, Sever do Vouga. Licenciou-se em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Trabalhou num laboratório da indústria farmacêutica. Reside em V. N. de Gaia. Tem poemas dispersos por colectâneas, revistas, jornais, e em diversos sítios do ciberespaço. Actualiza com mais frequência o blogue http://fogomaduro.blogspot.com .

Sito in http://domingosmota.blogspot.pt/

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