GERMANO Silva começou a estudar o nome das ruas do Porto quando era estagiário e ouviu que só seria um bom repórter se conhecesse bem a cidade. Aos 82 anos, o ex-jornalista publica Viagem ao Passado, que reúne textos da sua coluna semanal no Jornal de Notícias. Entre outros, passam por aqui os Clérigos, o Majestic e a Cadeia da Relação.
Como começou a escrever a sua coluna semanal para o Jornal de Notícias?
Houve uma reformulação no jornal, em 1994, e foi-me sugerido que contasse histórias do Porto. Em 1996, quando me decidi aposentar, o director pediu-me para continuar e nunca falhei uma semana. Tentei dar a essas crónicas uma orientação pedagógica, no sentido de que as pessoas vão tratar melhor a sua rua se souberem que ela tem uma história. Foi com algum contentamento que percebi, pelas reacções, que esse objectivo foi atingido. As pessoas vêm falar comigo, abrem-me as portas e assim descubro muitas coisas: tectos em estuque, escadarias em granito, capelas interiores, oratórios…
E o que é que lhe perguntam?
As pessoas gostam de saber as suas origens. Sou procurado por muita gente, através de mensagens, de emails e na rua. Dizem-me: “Eu vivi naquela casa, o meu avô também, sabe dizer-me as origens?”. Com as contingências em que vivemos agora, de sacrifício, as pessoas estão fartas da política e querem algo diferente.
O que encontrou até agora de mais rico?
Os habitantes, as pessoas. O Porto tem uma história muito rica em termos de liberdade e liberalismo. É património da humanidade, será a capital do trabalho, mas o carácter liberal já vem de antes da Revolução de 1820, do tempo em que os mercadores negociavam com Flandres, Inglaterra e o Norte da Europa. Conviviam com doutrinas novas e aplicavam-nas; tinham lutas contra a prepotência do bispo, que era o dono da cidade. É dessa emancipação que começa a nascer o espírito liberal. Em 1820, a revolta já é natural.
Poderia publicar um número infinito de crónicas e de livros sobre o Porto?
Sim. Este já é o 15.º ou 16.º, já nem sei bem. A verdade é que temos três grandes arquivos na cidade e em qualquer um deles há um manancial. Ainda há dias encontrei uma história interessantíssima, daquelas que gosto de contar, relacionada com o Mosteiro de Monchique. Uma abadessa do século XVII fez queixa à Polícia de um barqueiro, que ia cantar madrigais às freiras, com uma viola. O barqueiro defendeu-se dizendo que já tinha cantado para a abadessa e estado na sua cela. Ele argumentava que ela teria, isso sim, ciúmes. É vulgar este tipo de episódios nas crónicas monásticas.
Esteve 40 anos ao serviço do Jornal de Notícias, como repórter. Foi assim que começou a acumular conhecimentos e todas estas histórias?
Comecei em 1956 e, quando ainda era estagiário, fui fazer a reportagem de um incêndio, que foi só fumo, na Rua de Santa Catarina. Eu não sabia, mas era a casa onde nascera e vivera o romancista histórico Arnaldo Gama. Como aquilo não tinha pano para mangas, o colega do Primeiro de Janeiro contou a história do escritor. O chefe de redacção chamou-me no dia seguinte: “O repórter é um contador de histórias. Só serás um bom repórter se conheceres bem a cidade”. Comecei por tentar saber a origem dos nomes das ruas, a partir de um velho anuário, daí chegava à citação de um autor, fui comprando livros… Hoje tenho uma bibliografia bastante completa sobre a cidade.
Chamar-lhe historiador popular é algo que lhe agrada?
Eu não sou propriamente um historiador, sou um jornalista que conta histórias. Quando comecei não havia escolas de jornalismo, os mestres eram os chefes de redacção e tive a sorte de ter grandes chefes, de grande cultura. Diziam-me que tinha de ser entendido pelo catedrático e pelo engraxador. Em segundo lugar, o leitor não pode ficar com dúvidas. Por vezes, o que me dá mais trabalho nas crónicas é confirmar os nomes e as datas, como no jornalismo se cruzam as fontes. O estilo que uso é coloquial, aproxima-me das pessoas.
Há uns anos, disse que o Porto já não tinha coluna vertical como no passado…
Em finais do século XIX, o Porto tinha uma preponderância muito grande sobre Lisboa. Claro que Lisboa fazia chacota do Porto, a caricatura era de um tipo de tamancos, com um carapuço na cabeça, ou seja, o velho comerciante e homem de negócios. O Porto dos anos 1960 também tinha uma importância cultural muito grande e nos cafés faziam-se muitas tertúlias. A cidade sempre foi inovadora e foi aqui, em 1762, que pela primeira vez se cantou ópera em Portugal. Era uma cidade de gente com dinheiro e não é por acaso que D. João I vem aqui pedir dinheiro emprestado para as guerras com Castela.
Agora o Porto está vergado?
Os interesses são outros, são dos partidos, das ideologias… Mas ainda temos essa característica, revelada quando o Coliseu esteve para ser vendido à IURD, em 1995.
E a vitória de Rui Moreira nas últimas autárquicas, também foi um sinal disso?
Acho que sim. Não acompanhei muito a campanha, mas julgo que venceu por ser um homem independente, até economicamente, que conhece a cidade. O Porto já deu várias lições de lucidez ao país, como quando Fernando Gomes tentou regressar à presidência Câmara e não ganhou.
Daqui a 100 anos, quando se fizer a história da primeira década do século XXI no Porto, Rui Rio vai ser visto como um herói?
Ainda não pensei nisso [risos], mas estou certo de que o foco vai incidir sobre este boom turístico. Já acontecera na Idade Média, com os peregrinos a caminho de Santiago de Compostela. Hoje assistimos ao nascimento de hotéis, na Idade Média eram albergarias. A Torre dos Clérigos é agora um centro de atracção turística: o Padre Américo Aguiar, presidente da Irmandade dos Clérigos, é um jovem com uma visão mais ampla e moderna, que abriu a Torre e a Igreja aos turistas e tem feito avançar uma grande requalificação. Na comemoração dos 250 anos, queria 250 mil visitantes, mas já vamos em 370 mil.
Por João Pedro Barros publicado in SOL