TODOS conhecem e frequentam a Rua da Estrada. Todos, de um modo ou de outro, contribuíram ou contribuem para a materialização e consolidação da Rua da Estrada. Ela sempre fez parte da nossa vida, mas nunca a encaramos para além da toponímia. Era uma rua especial. Só isso! Álvaro Domingues [1] foi mais longe. Abordou-a como processo de conhecimento da urbanidade por estar convicto que a forma habitual do entendimento da “cidade” não nos leva a lado nenhum (nem à Rua da Estrada?). Nós pedimos-lhe orientação para encontrar a Rua da Estrada. Agora é só seguir as respostas.
O livro A Rua da Estrada é uma equação de arquitetura, um guia turístico, uma coleção de cromos, um manifesto, um caderno de encargos, um livro de terror ou uma brincadeira de mau gosto?
Preferia pensar que nenhuma das opções de resposta, excepto a equação. E, já agora, o guia turístico. Fiz a Rua da Estrada como processo de conhecimento da urbanidade por estar convicto que a forma habitual do entendimento da “cidade” não nos leva a lado nenhum. Aquilo a que se chama cidade perdeu o monopólio da urbanização e parece que nem se deu pelo caso, nem se construíram ferramentas de leitura da diversidade urbana que hoje existe. Será que só há o Tico e o Teco nos desenhos animados? E se morre o Tico?
Se o assunto mete medo não deveria ser estudado por psicólogos ou psiquiatras, em vez de geógrafos, engenheiros ou arquitetos?
Temo que a questão contenha um pressuposto com o qual descordaria em toda a linha – o de pensar que quem constrói a Rua da Estrada poderá ser um potencial psicopata. Não e não. Quando fotografo há sempre alguém que me pergunta o que ando a fazer. Explico e então a conversa que se desenrola é a mais normal deste mundo (excepto para mentes científico-técnicas que pensam que a lógica do mundo se confina nas suas supostas racionalidades). Somos filhos do racionalismo iluminista, o mesmo que explica como é que a mesma racionalidade dá uma bomba atómica e uma máquina de tirar radiografias. Não devemos esquecer aquela frase que diz para não nos esquecermos de que quem inventou o comboio, sem saber, tinha inventado o descarrilamento.
Por que diz que na Rua da Estrada não passam só os bodes expiatórios do costume: especulação, défice de planeamento e ilegalidades?
Há (pelo menos) duas atitudes na forma como se vê o mundo: uma é analítica e outra reguladora/normativa. A analítica procura explicações para as coisas, independentemente de racionalidades e éticas ou estéticas pré-concebidas; a reguladora acha que, independentemente do que o mundo é, devia ser qualquer coisa que a sua ideologia específica, racionalidade ou estética dizem que é. Quem não quer construir ou aceitar explicações (mesmo que não concordem com a sua), usa mais facilmente um bode expiatório, uma espécie de explicação, e segue em frente. Ficará mais calmo, mas não resolve nada e continuará a não perceber o mundo. Se tiver muito poder até é capaz de destruir quem não pensa daquela maneira…, já aconteceu várias vezes.
Sendo a Rua da Estrada como uma corda onde tudo se pendura, não corremos o risco de um dia a corda rebentar com tanto peso?
Não. Os processos de auto-regulação são uma forma de encontrar equilíbrios e diminuir atritos e conflitos. Acontece em todos os contextos urbanos. Chama-se congestionamento e costuma originar um ciclo diferente que pára o processo acumulativo de aumento de carga urbana num determinado território.
É muito profundo o buraco negro aberto entre a Rua da Estrada e a ligação à autoestrada?
O buraco negro é tal qual o da física teórica: um ponto máximo de distorção do espaço-tempo com um efeito gravitacional poderoso. No nó de uma auto-estrada acede-se a uma operação de compressão do espaço-tempo que permite, através da velocidade, percorrer espaços rapidamente na via rápida. Isso coloca questões de compreensão das relações espaço-tempo no território. Quando tudo flui com facilidade, a distância física é menos relevante e é mais importante a acessibilidade e a facilidade de acesso, de relação. Por isso os nós das auto-estradas e as suas proximidades são tão procurados. Permitem vivenciar espaços muito vastos e trocar a densidade, a proximidade e a aglomeração pela acessibilidade.
Tem saudades do tempo em que as estradas eram apenas estradas?
Não. Há imensas estradas daquelas que levam ao “longe” e permitem outras poéticas da viagem. Infelizmente o país esvaziado e disfuncional é geograficamente maioritário. Há muito quilómetro por montanhas, vales e pedregulhos. Do que tenho saudades é dos bons projectos de estradas atentos às árvores, às qualidades paisagísticas dos traçados, a um ou outro facto excepcional que fica junto à estrada e por aí.
Com a atual Rua da Estrada já não se faz poesia como antigamente?
Não sofro de nostalgia. Consigo encantar-me e interessar-me com muitas das coisas da Rua da Estrada; é uma questão de mudança de atitude e de atenção ao quotidiano, ao banal, às coisas comuns da vida e a muitas excepcionalidades. Aconteceu-me o mesmo recentemente em Luanda. Aprendi mais na Rua da Estrada do que no musseque ou na Luanda do luxo e da ostentação.
Defende um inibidor de paisagens alheias à margem das estradas, ou seja, os condutores deveriam ser inibidos de se distraírem com outras paisagens a não ser as que veem correr pelos espelhos e pelos vidros?
Pois não é paisagem o que corre pelos vidros? Nós é que pensamos que paisagens são espaços abertos e grandes profundidades de campo visual. Não é verdade, estamos demasiado formatados pela estética oitocentista da pintura de paisagem. A visão a partir do automóvel é cinema; não é a atitude estática e contemplativa do caminhante enquanto sujeito empoleirado no bico de uma rocha a perscrutar horizontes.
A Rua da Estrada, por ter muitos locais sagrados (entalados ou não), torna-se um lugar de culto?
Deus não morreu, como muitas vezes se pensa. O sagrado faz parte dos mundos simbólicos que guiam as nossas crenças e aspirações. Dizia o Ovidio no seu tempo de romano da antiguidade que Dos deuses é-nos útil a existência / e como é útil existirem deuses / acreditemos que realmente existam. Como na Via Apia onde se construíam túmulos e templos votivos, a Estrada está cheia das pegadas dos deuses e do desconhecido como não podia deixar de ser, tratando-se de coisas dos humanos.
Uma casa feita na rotunda é um privilégio para quem? Para a rotunda, para os donos da casa ou para os condutores?
Para todos. Num espaço de fluxos e de relações, as rotundas são rótulas que nos tiram das linhas e nos obrigam a olhar em volta e a estar atento ao que por aí está ou passa; são momentos de intensificação da percepção (daí o trocadilho entre contornar e controlar). O inventor das rotundas, (Eugène Hénard, o que desenhou a Étoile em Paris) chamou-lhes giratórios e colocou-lhes monumentos no meio. No centro e na periferia da giração, as coisas são mais visíveis e estão mais presentes.
Só há casas de sonho na Trofa?
Todas as casas são de sonhos. Uns mais e outros menos realizáveis. Quando podemos ter alguma capacidade de decisão na escolha, construção ou modificação da nossa casa, passa-se aquilo que se passa com tudo que é nosso e que está muito exposto publicamente – acaba por reflector aquilo que julgamos ou queremos ser na sociedade. São coisas que são sinais de nós e dos nossos sonhos. Na prateleira de cima, só quem acha que está muito bem situado socialmente é que pratica “um charme discreto” quase invisível e que parece dizer “não preciso de me expor muito porque todos me conhecem a mim e à minha genealogia”. Na prateleira de baixo está-se tão frágil e inseguro que se acha que não vale a pena; está-se diluído na massa. O modernismo achava que se todos vivêssemos em blocos cinzentos do mesmo tamanho, a sociedade era igualitária e justa. Dá para rir, apesar de aborrecido.
Terá sido um camião cheio de coincidências, má vontade, lapsos ou aselhice que atropelou a casa da página 46?
Não. Foi a racionalidade abstracta de por asfalto em cima de asfalto e achar que a estrada é uma tira técnica indiferente ao contexto.
As casas kitadas são assim designadas por estarem adiantadas ao seu tempo (delas, casas)?
Casa kitada é casa que foi pensada para ser casa e que depois foi kitada para poder conter outras funções que o seu tempo reclama. São do seu tempo, portanto.
Além de casas com piercing, também existem casas tatuadas?
Muito. A tatuagem, como estudam os antropólogos, é uma poderosa linguagem simbólica de reconhecimento social. Há um século pensava-se na Europa auto-intitulada de civilizada, que tatuagens e outras coisas eram selvajarias. James Cook no sec XVIII tinha ficado fascinado com as tatuagens dos povos do Pacífico, especialmente do Taiti e da Nova Zelândia e trouxe esse gosto para a Europa, a começar pelo universo dos viajantes e marinheiros; antes, Vaz de Caminha, anotou esse tipo de decorações no relato do achamento do Brasil; não percebeu muito bem mas achava aquilo uma coisa boa na sua visão do “bom selvagem” muito antes de Rousseau. Depois a tatuagem transformou-se num exotismo e desde há muito que atingiu finalmente o seu estatuto de código estético para a cultura erudita. Não sei que diga. Gosto da variedade das casas tatuadas.
As casas teatro dão muito espetáculo a quem passa na Rua da Estrada?
A casa-teatro é um dispositivo de visibilidade e cenografia do real. Fazer cenas é o que mais no acontece. Na actividade comercial, sem cenário não há produto ou serviço que sobreviva amontoado. É a vida, como se diz do teatro.
Se as casas da Rua da Estrada têm tudo por que é que algumas usam próteses?
Porque nunca se tem tudo. Por definição, a prótese é um dispositivo tecnológico (físico, químico, electrónico..) que permite repor e/ou expandir funções e possibilidades. Vivemos em mundos cheios de próteses: casas, automóveis, telemóveis, vacinas, aviões, óculos, etc. Muito mal iria o mundo se tal não existisse. Abelhas, animais quase sem cérebro, constroem laboriosas casas todas iguais há milhões de anos. São seres “fechados”. Nós somos “abertos”, culturalmente fabricados e por isso incorporando constantemente variedade e mudança.
Se na Rua da Estrada não é a lógica do peão que conta, então não seria melhor aqueles circularem pelo meio da estrada para que os condutores e passageiros pudessem ver melhor as montras?
Ou colocar as montras no meio da Estrada… O que quero dizer é que não é só a lógica do peão que conta. Por isso não há propriamente montras (tal como as entendemos nas ruas convencionais); há vários dispositivos de visibilidade dos mais diversos tamanhos e feitios, até ao edifício-montra.
A Rua da Estrada é um lugar comum como outro qualquer?
Creio que sim no sentido em que não é nenhum lugar “esquisito” ou “anormal”. É uma das formas bastante vulgares de perceber a urbanidade enquanto relação, movimento, diversidade de funções, dotação infraestrutural, edificação.., “muitas e variegadas gentes” como diria Fernão Lopes. De resto, a Rua da Estrada não é um lugar (seja lá o que se entender por isso), é uma relação, vive do movimento.
Se vive no trajeto da Rua da Estrada também costuma fazer compras no mercado da estrada?
Sim, como quase todos nós. É difícil não parar para comprar no mercado informal de produtos agrícolas – quem vende a sua produção ou a produção de outros, desde as couves às cerejas –, nos inúmeros estabelecimentos onde há de tudo, desde automóveis e antiguidades, a bons restaurantes, sex shops ou lojas de electrodomésticos.
É possível arrematarem a Rua da Estrada?
É possível fazer arrematações e leilões na Rua da Estrada. São formas de vender.
Perante tantos códigos da estrada qual deles deverá ter prioridade?
Depende daquilo em que estejamos a pensar, visto que o Código da Estrada e os seus sinais e regras não é o único código. A Rua da Estrada é espaço público e por isso lugar de muitas formas de expressão da nossa vida em conjunto que não é possível sem regulação formal ou informal; por isso damos passagem a alguém que caminha com dificuldade ou que vai carregado sem que para isso seja necessário estar lá um sinal codificado. Já reparou como é ridículo haver faixas para bicicletas? E se as tivesse que haver também para os carrinhos de mão, os patins em linha e os carapaus de corrida? Haveria faixas coloridas e especiais para cada um? As lógicas de auto-gestão do mix e do multi-funções-usos são tão necessárias como por vezes as da especialização. Por isso não se pode andar de skate nas pistas dos aeroportos…, embora apetecesse (por vezes).
Se existe a rota dos móveis, do vinho verde, do Douro, das cebolas, do românico, das estrelas, da terra fria, porque não existe a rota das Ruas da Estrada?
Claro que existe! Não é pelo acto de não ter placas indicativas ou campanhas publicitárias que não existe. Aliás essas rotas são, antes de tudo da Rua da Estrada porque é por aí que lá se vai às cebolas e ao românico.
A Rua da Estrada é a estrada em diferido de um beco sem saída?
Não. Um beco sem saída é isso mesmo. O que há mais na Rua da Estrada são saídas e entradas. A Rua da Estrada faz parte de um rizoma extremamente poroso. Não existem 100 ou 200 metros seguidos sem haver cruzamentos, entroncamentos ou rotundas. Quem inventou a Rua da Estrada enquanto problema foi a classificação rígida e mutuamente exclusiva de que em matéria de asfalto só há ruas ou estradas. Foi por isso que o ornitorrinco esteve quase 90 anos sem classificação. A biologia e as suas classificações científicas achavam que o bicho era kitado e que não podia existir… O mundo está cheio de ornitorrincos! São animais fabulosos!
Podemos considerar a Rua da Estrada um monumento?
Podemos considerar que a Rua da Estrada está cheia de monumentos. Monumentos são edifícios grandes ou pequenos que valem pela visibilidade e significado que detêm nas chamadas memórias colectivas como o Mosteiro da Batalha que está na Rua da Estrada N1 ou IC2 ou essas letras e números abstractos. São pequenos monumentos as antigas alminhas e também há castelos como certos postos de transformação da EDP que foram construídos com ameias e gárgulas. Os engenheiros gostam de arquitectura medieval.
Se fosse música o que corre pela janela do automóvel que tipo de música se ouviria ao longo da Rua da Estrada?
Uma diversidade de expressões musicais marcadas por um profundo ecletismo e pela mistura entre referências eruditas e não eruditas. Não partilho das dicotomias habituais da alta e da baixa culturas, ou do bom e do mau gosto. Há gostos e referências culturais que cada um de nós mistura constantemente. Vivemos num contexto de “cultura-mundo” profundamente aberta a todas as expressões e misturas, e por isso Bach poderia compor fado. Stockhausen é um chato e o minimalismo muito repetido, um aborrecimento. O regime estético da música é, felizmente, muito variado e instável. Já lá vai o tempo em que eram as elites burguesas das academias que diziam o que era o bom gosto e a erudição e assim se distinguiam e apartavam da maioria e das suas brutezas e falta de ilustração. O raio que os parta, com o devido respeito.
Há muita natureza morta ao longo da Rua da Estrada?
Natureza morta é uma categoria de pintura e fotografia que está fora de moda. Portanto, não há.
Onde paira a alma da Rua da Estrada?
A alma só existe para os que nela crêem. Para esses está em todo o lado onde a quisermos encontrar.
A Rua da Estrada é o cemitério da rua ou da estrada?
Só o seria se para além de Rua e de Estrada não houvesse outras categorias. É como pensar o mundo a preto e branco quando ele é a cores.
Funcionando a Rua da Estrada como um sismógrafo dos movimentos da sociedade, em que escala se medem aqueles movimentos? Será na escala de Álvaro?
Não tem escala porque a sociedade também não a tem, para o melhor e para o pior. Sociedade é uma negociação permanente entre consenso e conflito. O que me diz a realidade é que a durabilidade e a, como agora se diz, resiliência da Rua da Estrada são a melhor prova do seu sucesso enquanto dispositivo sócio territorial de vida em conjunto. Pensemos nisso, portanto, e tiremos as devidas consequências.
Qual a probabilidade de um dia acabarmos todos sepultados na vala comum da Rua da Estrada?
Diz-se isso a propósito de tudo o que nos fascina e que não entendemos completamente, desde a internet às auto-estradas. Na vida de todos os dias usamos tudo, desde avenidas a auto-estradas, caminhos, ruas, estradas, quelhos, becos e tudo e tudo. Nenhum deles nos engole (os abismos, sim).
É verdade que o problema é fazê-los parar por parte de quem quer que paremos?
Tal como está no livro, sim…; foi-me dito por alguém que tinha um negócio e que respondendo ao meu comentário sobre o fluxo intenso de passantes e a sua importância para o negócio, me dizia que sim, que sim, o único problema era faze-los parar e transforma-los de potenciais clientes em clientes. Já era assim na sociedade das origens quando os humanos deambulavam com os seus animais e eram desafiados ou seduzidos a parar para fazerem as suas trocas e transacções materiais e imateriais.
Finalmente: nas páginas 55, 90, 175 e 218 é visível publicidade ao Pingo Doce. Afinal quem patrocina A Rua da Estrada?
Todos nós. O Pingo Doce e o Pingo Azedo aparecem com a maior facilidade porque todos os negócios e marcas estão bastante visíveis na Rua da Estrada. Basta procurar.
Foto de Rui Farinha.
[1] Que não escreve com o que dizem ser um acordo ortográfico.
Publicado originalmente em 7 de Fevereiro de 2015
É uma obra inspiradora e inovadora.
Reflete o olhar de quem tem o conhecimento e a sabedoria que lhe permite ser tolerante e evitar os estereótipos das opiniões sobre a paisagem.