O PRINCÍPIO ideológico que regula a selva global do capitalismo está a reduzir a fanicos o pouco do solidário que a sociedade tinha: cada um por si, portanto. Não há contos de crianças. Há folhas de cálculo, discursos cinzentos em economês, correctíssimos, e conversas blindadas sobre o efeito da subida de uma taxa nos santos espíritos das hormonas da outra, sobre a sustentabilidade seja lá do que for e assim por diante de palavras feitas de ração granulada e chumbo derretido. Os lugares do Estado e da Política foram tomados de assalto pela ceifeira-debulhadora-enfardadeira da máquina do dinheiro que faz dinheiro; o cidadão foi fatiado em cliente, utente ou consumidor e dissolvido em estatística descritiva e listas de espera.
Na sanha individualista de cada um apanhar o elevador que o vai levar acima do patamar do vizinho para lhe largar uma mó na cabeça, vale tudo, incluindo tirar olhos e meter lá uns carvões com lentes de contacto opacas para que não se veja mesmo nada nem para dentro nem para fora.
Por isso a Rua da Estrada está cheia de plataformas elevatórias telescópicas e empilhadoras que umas às outras se ignoram enquanto gritam por decibéis de amarelo, laranja, vermelho e outras sonoridades vistosas. Gesticularão até ao limite de resistência das suas geringonças de subir, descer e rodar, para que as levem. Será já tarde porque o asfalto e a erva seca ameaçam galgar a delicada grade que as protege.
SOBRE O AUTOR: Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde também é investigador no CEAU-Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo. É autor de A Rua da Estrada, Vida no Campo e Volta a Portugal.