QUANDO Marcel Duchamp inventou o readymade não estava em causa uma provocação gratuita às convenções da produção artística de então e aos seus salões; a esses, Duchamp propunha que imaginassem um Rembrant a servir de tábua de passar a ferro. A coisa era muito mais séria. Para lá da história ou da teoria da arte, das polémicas do gosto e do mau-gosto, Duchamp pretendia focar-se na pura fruição estética do objecto artístico, livre de autorias, resgatado ao seu mundo quotidiano e banal através de um exercício de descontextualização e de descentramento provocado, por vezes, pela simples nomeação, pelo título dado à obra, pela sua exposição pública. Desde então que o readymade adquiriu um estatuto irrevogável no campo da arte.
Em primeiríssima mão, ainda com a etiqueta com que saiu da oficina, cá está a “Geringonça”, o readymade de que fala também um irrevogável tribuno da cena portuguesa, especialista em dissimulação e pirotecnia dos fogos-de-artifício da política! A obra consta de um tubo em ferro com cerca de quatro metros, rematada por três peças sobrepostas, a última das quais, uma manivela rotatória. Ao lado, a Geringonça tem uma mala de peças e acessórios.
Reinventa-se assim a esquerda em tempos de Estado sem soberania e sem dinheiro, refém da avidez da finança, do delírio em que a Europa se tornou e dos pirómanos dos regimes democráticos que pensam que tudo se resolverá com o esvaziamento da política reduzida à interpretação das palpitações bolsistas e das neuroses dos mercados. Por isso, ponha-se a Geringonça a girar quanto antes; precisamos de energia, de coisas novas, de ver futuros.
Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde também é investigador no CEAU-Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo. É autor de A Rua da Estrada, Vida no Campo, Volta a Portugal e Paisagens Transgénicas.
Publicado originalmente em 25 novembro de 2015