À ENTRADA do Mercado do Bolhão, quadro insólito: um homem, boné do Futebol Clube do Porto, gravador ao peito, auscultadores nos ouvidos, a cantar. A cantar e a bater com as canadianas: o acompanhamento musical. Uma orquestra de muletas, um vocalista desafinado, a espantar os transeuntes. E há mãos comovidas a caminho dos bolsos, dos porta-moedas. Outras não.

Estou aqui a dar carinho às pessoas, a animar o povo. E as pessoas reconhecem, gostam, dão gorjetas. Só de olhar para mim ficam alegres, depois eu falo em certas coisas.

Mãe que partiste
e não voltaste
mas deixaste
o teu retrato tão lindo.

Mãe o teu retrato
é tão lindo
parece que me está ouvindo.

Eu dantes cantava em Valongo, nas paragens. E também cantava aqui, mas desde as eleições para a Câmara comecei a cantar só aqui. O Melo, presidente da Câmara, podia ser de que partido fosse, mas era uma jóia de pessoa. Agora este que para lá foi não me deixa cantar e eu vim para o Porto. Na Internet apanharam-me e estou em todo o mundo. Dantes era cantor de Valongo, agora puseram-me também cantor do Bolhão.

Eu francamente não precisava de andar nestas coisas, mas tenho pena das pessoas. O padre da capelinha das almas já me conhece, e o bispo, até os que andam a estudar para padre estiveram aqui e disseram que eu estava a fazer um papel importante. Quando estou a cantar cantigas da igreja até me vêm as bagadas aos olhos.

As pessoas têm muito amor à minha pessoa. Vem gente do Sobrado, de Valongo, vem tudo aqui. Ainda hoje Ai você nasceu em Valongo e anda aqui? Deixei Valongo porque lá não sabem respeitar as pessoas. Aqui tem mais coiso. Lá não há aquele carinho como aqui. Uns pagam por causa dos outros. Aqui até as pombas me conhecem.

Dou-lhes pão aos bocadinhos. Se eu lhes der aos bocados grandes, elas entalam-se. Alguns dão pontapés nas pombas. E eu digo, As pombas não fazem mal a vocês. Vem um, pumba, dá um biqueiro, vai outro caço-lhas, metem-nas no bolso e levam-nas para casa. Já vi um gajo a dar de comer e a caçar nas pombas, a meter ao bolso e a levá-las.

Sou portista, graças a Deus

Os benfiquistas, quando eu estou a cantar, ficam danados. Sou portista, graças a Deus, desde que tinha cinco anos. Sou do Porto há 63 anos. Lembro-me do Miguel Arcanjo, do Marujo, daqueles jogadores que já estão no outro mundo. E o Yustrich, o Pedroto. Eu sou do tempo do Monteiro da Costa, do Jaburu, Gaston, Valdemar, Carlos Duarte, Acúrsio, Hernâni, Barrigana. Sou desse tempo.

Rosas brancas
como tu não há igual
o Porto é o maior
dos maiores de Portugal.

Os benfiquistas não gostam que eu cante. Já chamaram a polícia para me autuar. Uma mulher veio aqui atirar-me com água, o pai dela anda a vender rifas. Trouxe um balde de água e atirou-me. Também o gajo da loja é um ranhoso, é um benfiquista ranhoso. Metia-se comigo, não sabe respeitar as pessoas, mas desde que o Benfica foi eliminado da taça UEFA nunca mais apareceu.

Um chegou à minha beira e disse Se você tivesse um cachecol ou um chapéu do Benfica dava-lhe uma gorjeta. E eu disse Olhe, eu não quero gorjeta do Benfica. Olhe o céu, eu assim para ele, olhe o céu, o azul, o azul e branco. É muito lindo, é a cor de Deus. Deus também é azul e branco.

Há três que vêm aqui todos os dias chatear-me. São dois trapalhões e mais um, equipado, usa óculos e tem a mania que é o maestro. Para aferroar dizem que o Benfica é campeão e que o Porto anda de caganeira. E eu digo, A caganeira passa, mas vocês dão carne podre à águia. Ide pagar o que devedes. O Porto é o maior. O Porto ganhou tudo. O Porto ganhou 20 taças Cândido de Oliveira, o Benfica ganhou 2, o Sporting ganhou 7, o que é que vocês querem? Nem o Real Madrid tem uma Taça Intercontinental. Só o Porto. O Porto ganhou a Taça das Taças, uma Taça Intercontinental, dois Campeões Europeus, duas taças UEFA: seis. E o Benfica? Dois Campeões Europeus no tempo do Salazar.

Em Valongo são padeiros
em Sobrado lavradores
em Lordelo marceneiros
a terra dos meus amores.

Sou da terra dos móveis: Lordelo, Paredes. Os de Paços de Ferreira aprenderam a arte com os de Lordelo. Trabalhei como entalhador. O meu avô é de Valbom, também entalhador. De móveis. De todas as madeiras.

Sei mogno, sei eucalipto, sei castanho, sei de toda a madeira que calhar. Século XVII, século XVIII. Trabalhava com goivas, caixobi (o que faz a gravação), o martelo, não é martelo é maceta. E muitas goivas. Palheta 1, 2, estreitinhas, mais largas, formões. Para cima de umas 50 peças. As peças eram minhas. Eu deixei isto há mais de 20 anos, deixei lá numa mala. Na família também aprenderam a arte comigo e levaram a ferramenta, compreende. Os meus irmãos também os ensinei. E gente de fora. Às vezes pediam-me e eu ensinava-os. Eu trabalhei em casa do Madaleno, em vários. Fábricas que tinham uma média de 50 empregados. Um era Quinzinho, outro era Jardim Ferrinha. Eu às vezes trabalhava à peça em casa. Agora a coisa de entalhação foi abaixo: é tudo obra lisa. E eu também não posso trabalhar por causa da coluna e tudo o mais. Caí, fiz operação à anca, tenho a perna inutilizada.

O assobio

Estive na tropa em Moçambique. Em Tete, Beira. Era de uma companhia de Apoio Directo: mecânicos, bate-chapas, carpinteiros. Fazíamos tudo. Na tropa estive no ano de 1969 e vim em 1971. Eu era soldado. Tinha a escola de cabos, compreende, mas de certa maneira houve um problema na companhia. Cheguei dois minutos atrasado na formatura e mandaram-me cortar o cabelo. Eu agarrei e não deixei cortar o cabelo, são coisas que acontecem. Deram-me cinco dias de detenção. Depois, em Tete, no refeitório, não deixei fazer pouco. Lá um chefe de mesa começou a mandar comigo e deram-me mais três dias. Quilharam-me, ao cabo não.

Depois houve mais um problema: estava de Oficial de Dia o capitão de outra companhia, que a mim não encarava, e queria que eu acusasse um gajo. O capitão disse: Você estava na caserna tem de saber quem era. E eu disse: Não sei, eu não vi, eu até podia estar na casa de banho. O gajo era de Vila do Conde, eu não queria prejudicá-lo, compreende. Os gajos de Vila do Conde alto lá com eles. São os de Vila do Conde e os alentejanos e os madeirenses. O gajo tinha dito Quem quer ir ao cu ao oficial de dia que dê um assobio. Mas eu não disse ao capitão quem foi.

Direitos iguais

Alguns não me encaram. Não respeitam quem está no seu trabalho a dar carinho às pessoas, aos idosos, juventude, turistas. Há mulheres que ficam com ciúmes por verem as idosas a darem-me beijos. Há um que tem um clarim e uma mala e tem dinheiro dentro a entusiasmar as pessoas. O clarim dele dá muito barulho, eu tapo os ouvidos. O ceguinho que toca na esquina já foi escorraçado da Batalha. É ceguinho, mas é uma jóia de pessoa.

Olhe, àquela senhora que vem aqui roubaram-lhe a carteira:

– Oh minha senhora, noutro dia roubaram-lhe a carteira.
– Roubaram-me a carteira com a minha reforma.

Tive pena e emprestei-lhe o que tinha. Eu também fui roubado. Roubaram-me uma sacola de couro. Foram os do Benfica, não foi mais ninguém. Mas piores que os do Benfica são os da droga.

Eu tenho pena das pessoas, eu francamente já telefonei para os bombeiros irem buscar idosos. Caíam lá na estrada e eu apanhava-os. Eu tenho muito crédito em Valongo, nos bombeiros e tudo o mais. Mas há mais de um ano que eu não canto lá. Deixei. Lá tem pessoas que não têm mentalidade e eu, para não me chatear… O presidente da Câmara não é da minha cor. Eu sou militante do PSD. Durão Barroso, Santana Lopes, todos me conhecem. Já estive com eles. Estive com eles no Coliseu, estive com eles em Valongo. Às vezes dizem-me, então tu és pobre e és do partido dos ricos? E eu respondo Então os pobres não têm os mesmos direitos que tem um rico?

Até os netos

O meu nome é António Ferreira Coelho. Mas, na terra, todos é por Leite que me conhecem. O meu falecido pai era russo e naquela maré puseram-lhe Leite, por ser russo. Tenho 68 anos. Casei, tive de tratar da minha vida e tudo o mais. Tenho seis filhos, três casais. Eles não querem que eu ande a cantar, mas quem manda sou eu. A minha mulher está assim um bocadinho da cabeça e eu não estou para me chatear por causa dela. Há coisas muito mal compreendidas e quando as pessoas, os filhos, querem mandar nos pais desta maneira e daquela. A mãe deu-lhes muito abuso. E têm mais amor à mãe do que ao próprio pai. Depois há certas coisas, compreende, em casa é tudo vermelho, tudo mouro. Até os netos são do Benfica.

Fotografia e texto de Augusto Baptista (texto redigido após conversa com António Ferreira Coelho, meados de 2015; sessão fotográfia concretizada nesse período, em diferentes momentos), publicado in Azul-Canário

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