I

A IRMÃ dormiu durante quase toda a viagem do convento ao aeroporto. Tinha encostado a cabeça ao vidro e adormeceu embalada pelo monocórdio do taxista. Quando respirava, deixava escapar pela boca um ruído que parecia brita a ser pisada por um adulto e por um rapazito. O taxista só parou de falar quando se apercebeu pelo retrovisor que a sua cliente ia a dormir, os óculos graduados da freira balouçavam-lhe castamente na pontinha do nariz. Mas a irmã não estava a dormir; resolveu fechar os olhos quando estavam a passar pela zona de Condeixa, o taxista não parava de falar sobre o único neto que por acaso se chamava Francisco. Era o orgulho incurável dos avós (pelo menos até atingir os dez, onze anos, depois a história seria outra), e a criança nem sequer era um vidente credenciado. O taxista mudava de tema como se estivesse a engatar velocidades, começou a falar sobre o sistema educativo, sobre a uber e depois fez uma ponte pertinente com as touradas, tópico que é quase sempre do agrado dos taxistas. Dedicou algum tempo ao assunto ou, se preferirem, cerca de uns quinze, dezasseis quilómetros. Uma Nossa Senhora de Fátima pequenina pairava a meio do tablier. Antes de “adormecer”, a irmã Lúcia pediu silenciosamente perdão à Virgem por aquilo que ia fazer.

A irmã Lúcia pertence à Ordem das Carmelitas Descalças e, como devem calcular, as carmelitas descalças não nadam em dinheiro, não vivem propriamente de uma forma desafogada. Graças ao carisma e à capacidade de negociação da irmã Lúcia, conseguiram assinar um excelente protocolo com a maior central de táxis de Coimbra. Durante vinte e quatro meses, as conventuais irão usufruir de um desconto de 25% sobre a tarifa normal e, em contrapartida, os taxistas e familiares directos poderiam receber a bênção das irmãs através da grade de clausura sempre que a disponibilidade das freiras assim o permitisse. Por exemplo, para um percurso longo como este, Carmelo de Coimbra » Aeroporto de Lisboa -, a irmã Lúcia irá pagar uma bandeirada de 147,5€ (sem bagagem). Sim, há que reconhecer que é uma tarifa muito em conta.

Em 1948, o Carmelo de Santa Teresa recebeu a sua irmã mais famosa do século vinte: a irmã Maria Lúcia de Jesus e do Coração Imaculado, ou irmã Lúcia, vidente de Fátima, que aí permaneceu até aos dias de hoje. Ao longo destas décadas de recolhimento, a irmã Lúcia viu partir dezenas de irmãs: em 1970, saíram quatro irmãs para fundarem um novo Carmelo em Braga e, em 1994, saiu outro grupo de sete irmãs para abrir um novo Carmelo na Guarda. Apesar da sua profunda experiência eclesiástica, a condição especial da irmã Lúcia, a única vidente viva da Nossa Senhora, impedia-lhe de fundar novos Carmelos.

A irmã Lúcia não ia fundar um novo Carmelo, mas também não ia apanhar nenhum avião. Tinha muita urgência em entregar uma carta a Sua Santidade o Papa, e o posto dos correios do aeroporto encerrava apenas às 23h. O documento era uma espécie de adenda aos três Segredos de Fátima. Era a primeira vez que a irmã Lúcia saía sozinha do convento, mas o motivo era mais do que justificado. A irmã achava que era algo que ela tinha de fazer sozinha, não podia delegar a tarefa a mais ninguém, ainda que depositasse a maior confiança em qualquer irmã do convento, fosse ela a madre superior ou uma simples noviça.

Há cerca de um ano, a irmã Lúcia recebeu um pedido de Graças por parte de um grupo de finalistas do curso de Teologia da Universidade Católica de Lisboa. O grupo fez uma colecta (uma “vaquinha”, como se costuma dizer no meio académico e não só) para oferecer uma edição lindíssima da Bíblia Pastoral à vidente: dois volumes, costurados, acabamento de luxo, capa dura e detalhes dourados, com ilustrações. Um dos alunos mais promissores do curso, o JM, o João Mário, achou que a irmã Lúcia já deveria ter muitas bíblias, era algo que a irmã devia receber a toda a hora e sugeriu uma outra lembrança, algo que estivesse à altura do reputado curso de Teologia: as “Confissões” de Santo Agostinho. Alguns comentaram que não era nada mal pensado, outros torceram o nariz, as “Confissões” são uma obra densa, lenta, pesada, provavelmente não seria o melhor presente para a irmã Lúcia. Santo Agostinho aborda na sua magnum opus os seus anos transgressores de juventude e a sua vida adulta pecaminosa; fala do seu pai pagão; fala até de um amigo que era viciado em combates de gladiadores; abrange temas opacos e pouco tangíveis como a natureza invisível, a Memória, o Tempo.

Não, talvez não fosse boa ideia oferecer este livro à irmã Lúcia. Ao dizer isto, não estou a insinuar que a irmã Lúcia não era letrada; a própria reconheceu por diversas vezes que não tinha uma formação intelectual sistemática. Mas será que isto a impedia de dialogar com a cultura literária e filosófica do seu tempo e de outros tempos? A fome espiritual da irmã Lúcia sempre foi acompanhada pela sua sede cultural: se, por um lado, atira a irmã para os braços de obras escolásticas de referência como as “Confissões”, por outro, lança-a para o regaço de conceituados autores de ficção moderna & contemporânea, de estilo despojado até ao tutano, como Fante ou Carver. Lê-os com grande donaire, apreende o Zeetgeist com humildade.

Gran cosa es el saber y las letras para todo”, a irmã Lúcia adopta a máxima da fundadora da sua ordem, Santa Teresa De Ávila, estuda o mecanismo que faz mover os ponteiros do relógio do seu tempo. Esforça-se por se manter a par das últimas aparições marianas e milagres que sucediam por esse mundo fora, não vivia presa no passado. A partir do convento, a irmã Lúcia supervisionava ainda a gestão da imagem dos Três Pastorinhos, os direitos de imagem, o art work dos produtos de merchandising oficiais, etc. Mas também tinha um sentido prático muito apurado, gostava de meter as mãos na massa, por assim dizer; há coisa de quatro, cinco anos, não descansou até angariar fundos extraordinários para contratar uma empresa de isolamentos e impermeabilizações. Os tectos de alguns velhos cárceres apresentavam infiltrações e não aguentavam mais um Inverno. Escolheu o tipo de tela de TPO com a melhor relação custo-benefício, acompanhou os homens até ao último minuto da instalação das telas no telhado do convento. Mandou colocar extintores e sinaléctica nos corredores e claustros. Negociou a apólice de seguro que cobre danos graves provocados por incêndio, raio e explosão, fenómenos da natureza, danos por água, choque e impacto de veículos terrestres, queda de aeronaves, actos de grevistas e muitas mais coberturas que seria fastidioso estar aqui a enumerar.

Enfim, lembremos que, ao contrário de uma linha monástica mais austera, Lúcia não vivia num lugar ermo e afastado, mas num convento situado em pleno núcleo urbano, na cidade da terra do meio que não precisa de uivar nem de se engalanar para ser conhecida como “a cidade do saber”.

II

Por um mero acaso (que nunca o é), um terceiro-anista, Rodrigo Grangeia, estava presente naquela reunião e, de uma forma muito humilde e muito abnegada, sugeriu “O Livro das Moradas”, também chamado de “Castelo Interior” de Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada, mais conhecida como Santa Teresa de Ávila.

Poderá valer a pena falar um pouco sobre Rodrigo Grangeia. Ao contrário da maior parte dos seus colegas cuja vocação teológica se revelou bastante cedo, o chamamento de Rodrigo Grangeia fora outro: o jovem queria seguir Arquitectura. O pai, o Engenheiro Granjeia, queria que ele seguisse as suas pisadas, mas desde adolescente que o filho revelou ter imenso jeito para fazer croquis e maquetes, tinha o quarto forrado com pósteres de arquitectos famosos e das suas obras mais icónicas (desde Lloyd Wright a Libeskind, pensem num arquitecto mundialmente reconhecido e encontrariam a sua melhor foto e as seus principais criações expostas naquela divisão). Todas as correntes, todos os estilos estavam perfeitamente sequenciados nas paredes do quarto, uma imensidão de conceitos coagulava a cabeça de Rodrigo Grangeia como se fossem peças de roupa numa máquina de lavar em programa intensivo de lavagem. O Engenheiro Granjeia tentou endireitar o filho, encharcou-o de cálculo, análise, até hidráulica, mas não sortiu efeito; o hemisfério direito do rapaz levou a melhor sobre o esquerdo e sobre o próprio pai. A sementinha da estética e do conforto já tinha criado raízes na ATV do cérebro do rapaz. O Engenheiro Granjeia lá cedeu. Era preferível arquitectura (com letra minúscula) a marketing ou recursos humanos ou algo do género.

No último dia de Julho do seu último ano no liceu, uma voz forte e cheia de caracter esgueirou-se pela frincha da janela de vidro duplo do quarto de Rodrigo que tentava estancar a ansiedade com a leitura de “Os amores e desamores empedernidos de Frank Gehry“. O jovem esperava pela saída dos resultados dos exames de admissão. Rodrigo veio à janela. O céu era cruzado de vez em quando por gaivotas que não paravam de grasnar e que se entretinham a contornar os prédios. A voz de baixo-barítono pertencia a um dos trabalhadores que estavam empoleirados a reabilitar a fachada do bloco em frente ao seu. A patologia do edifício tinha entrado na fase terminal há cerca de dois anos (mais mês, menos mês), os condóminos tinham finalmente acordado entre si. Decidiram ao cabo de inúmeras e intermináveis reuniões que era premente a intervenção profissional e qualificada no bloco A do edifício Mare Nostrum. Algo teria de ser feito para evitar a completa degradação do prédio.

“Que desperdício de tempo e dinheiro”, pensou Rodrigo. A seu ver, aquele prédio não passava de uma nódoa suburbana como tantas outras, a melhor coisa a fazer era dar uma implosão de misericórdia àquele ente concreto. Quando se preparava para fechar a janela de vidro duplo, Rodrigo ouviu um grasnar agudo e aflito. Era de uma cria de gaivota que saltitava de forma desastrada pela berma do telhado do tal prédio, a avezinha tentava desesperadamente descolar pela primeira vez, o instinto dizia-lhe que estava mais do que na hora de abandonar o ninho de betão. Esta fatia inocente de vida animal tocou Rodrigo. Causou um abalo no ateísmo inconsistente e algo desajeitado do jovem com aspirações seculares, foi uma sarça-de-moisés a arder, um baque espiritual que fez mossa na mundividência constrita do jovem. Rodrigo ficou tão impressionado com o esforço da pequena gaivota, com a sua luta pela sobrevivência, com o mistério da vida em geral e da sua em particular que se fechou no quarto durante uma semana. Deus apareceu escancarado a R.G. na forma de uma cria de gaivota, foi a sua transverberação. Rodrigou anotou no seu moleskine aquilo que viveu naquele momento:

Quis Alguém que eu tivesse esta visão: eu vi um anjo a tentar ajudar aquela gaivota, em forma corporal. Porque é que o anjo estava a ajudar aquela pequena criatura alada que prospera agora nas nossas cidades? As pombas são as aves dos Testamentos, mas…gaivotas? Alguém, talvez o seu Mestre, quis que eu o visse assim: não era grande, mas pequeno, muito bem-parecido, com um rosto tão resplandecente, um jovem Errol Flynn mas sem bigode e com o cabelo mais comprido. A pequena gaivota ficou envolta de uma aura dourada, largando flechas de fogo sobre o telhado e sobre os vidros da claraboia do prédio. Os homens das obras nada viram. A ansiedade que sempre me sufocou durante toda a vida foi substituída por uma espécie de ardor que se espalhou pelo meu peito como se tivesse acabado de beber uma bebida branca de alto teor alcoólico, como rum ou vodca. Através daquela gaivota, Ele derramou em mim a Sua existência. Como é que poderei continuar a ser a mesma pessoa a partir deste momento?

A mãe, muito pacientemente, deixava-lhe as refeições num tabuleiro do lado de fora da porta, pensando que o filho estaria a estudar para os exames. Na altura, o pai encontrava-se a trabalhar para uma grande construtora no Cachito, Angola. Se o pai estivesse no país, era quase seguro que não já existiria porta, nem reflexões, nem crises de vocação de última hora. Ao sétimo dia, imerso ainda no conceito da Via Remotionis, Rodrigo Grangeia veio finalmente à tona e anunciou à mãe que iria estudar Deus e tudo o que estivesse relacionado com Ele.

“Eu era um periquito que viveu toda a sua vida numa gaiola tapada por um pano de flanela. Foi como se alguém me tivesse destapado a gaiola e tivesse finalmente visto o foco de luz que aquece este meu corpo. Foi Ele que me destapou a gaiola e me abriu a portinhola da gaiola. Não sei se tenho a coragem para escapar da gaiola e viver livre, mas sei que não quero viver o resto da minha vida tapado, na escuridão.”

A mãe teve um ataque de choro durante uns bons dez minutos e abraçou o filho. A senhora tinha sido catequista quando era mais nova e deixou a escola de domingo por causa do ateísmo agressivo do marido.

Quando regressou de África e tomou conhecimento da guinada vocacional do filho (a mãe escondeu-a do marido), o Engenheiro Granjeia quis:

a) Defenestrar o seu primogénito,
b) Expulsá-lo de casa,
c) Mandá-lo no primeiro avião para o estaleiro das Mabubas para trabalhar como servente de pedreiro (vulgo, o “moço”),
d) Aplicar os seus conhecimentos de psi invertida (nível intermédio) no filho.

Estas quatro alíneas passaram pela cabeça do Engenheiro Granjeia, mas a mulher – são quase sempre as mulheres, as mães – muito pacientemente, muito docemente, convenceu-o de que era melhor deixarem o seu único filho seguir o seu caminho. E aquele não era um caminho qualquer: de certa forma, a teologia e a arquitectura partilham o mesmo objectivo que é o de tentar procurar a luz.

O Engenheiro escolheu a alínea b. O periquito saiu à força da gaiola, embora continuasse a ser sustentado às escondidas pela mãe. Mais tarde, o Engenheiro ficou a saber da ajuda da mulher, os extractos bancários são verdadeiros “eye-openers” como dizem em Brum, Inglaterra, mas optou por fazer vista grossa – por muito que tente, um pai não consegue desligar o botão do amor paternal.

De volta à reunião de estudantes.

A votação foi unânime e o terceiro-anista Rodrigo Granjeia ficou incumbido de comprar “O Livro das Moradas”. Nesse mesmo dia, correu todas as livrarias de Lisboa, mas não encontrou o livro, nem mesmo em livrarias especializadas em literatura religiosa. Num destes estabelecimentos, foi-lhe dada a indicação que talvez pudesse encontrar a edição de bolso d’”O Livro das Moradas” na livraria do aeroporto, pois “havia muitos católicos a voar naquela altura do ano”. Lá foi ao aeroporto. Teve sorte, restava apenas um exemplar. A funcionária que o atendeu era uma moça pequena, de cabelo curto, muito despachada.

“Vai adorar este livro”, disse a funcionária que conseguia falar enquanto sorria. A jovem não tinha a obrigação de fazer esta observação, mas fê-lo, e Rodrigo foi apanhado de surpresa, não estava habituado a acréscimos verbais por parte dos funcionários das livrarias. De acordo com a sua experiência, os funcionários das livrarias só interagiam com os clientes se estes tomassem a iniciativa, como quando procuram este ou aquele artigo. Rodrigo sentiu uma espécie de indignação, estaria a moça a insinuar que ele não conhecia a obra de Teresa de Ávila? Mas depois achou que a moça estava apenas a ser simpática e respondeu-lhe que já lera quase todos os livros escritos pela santa. Disse “quase” para parecer realista e humilde ao mesmo tempo. A funcionária continuou a sorrir e não disse mais nada, apenas digitava. Rodrigo ficou um pouco desanimado, talvez tenha ficado com a impressão que a funcionária quisesse começar uma conversa. Olhou para trás, a fila de católicos e não-católicos com malas crescia atrás de si; “claro, ela tem mais pessoas para atender”, o jovem racionalizou o comportamento da funcionária de cabelo à lá garçonne. Não pediu para embrulhar o livro. Assim que virou costas, ouviu a funcionária a dizer “Vai adorar este livro” para o homem que estava atrás de si na fila.

Rodrigo gostava do ambiente cosmopolita dos aeroportos, sentia-se reconfortado com o vai e vem dos passageiros que de um modo geral pareciam muito civilizados. Sentou-se num dos poucos bancos livres para ler pela primeira vez o livro que tinha acabado de comprar. Demorou muito tempo a virar a primeira página, talvez estivesse a pensar na funcionária da livraria. O banco endureceu ao fim de um par de horas, e o jovem decidiu ambular pelos corredores do aeroporto com a obra na mão como um verdadeiro perípato. A única vez que interrompeu a leitura foi para ir à casa de banho; usou como marcador um daqueles folhetos publicitários com as lojas disponíveis fora e dentro da zona duty free e a respectiva localização na planta do aeroporto. Ficou a saber que no corredor seguinte encontraria uma estação dos CTT que fazia autenticação de fotocópias e amortização e subscrição de títulos de certificados do tesouro e de aforro e que encerrava mais tarde do que as outras estações. É sempre bom saber estas coisas. Antes de retomar a leitura, repetiu várias vezes as palavras Western Union em voz alta para testar a sua pronúncia claramente californiana.

Concluiu o livro pouco depois da chamada final para o último voo desse dia. Já em casa, fez o embrulho possível da lembrança para a irmã Lúcia, esquecendo-se de tirar o folheto do aeroporto.

III

A adenda ao Terceiro Segredo que a irmã Lúcia iria enviar com aviso de recepção:

O nosso peito arde porque tem de arder. A nossa alma sofre porque tem de sofrer. Acreditávamos em tudo o que nos rodeava: no Sol, na Lua, nas estrelas, no norte e no sul, no oeste e no leste, dentro e fora, nos nossos sentimentos, nos sentimentos dos outros, nos nossos pensamentos, nos pensamentos dos outros, na poeira, na chuva, nos ribeiros, nas pedras, nos montes, na oliveira, na azinheira, no poço, na dor, na felicidade, no medo, na ira, na pregueira e na abundância, no bom e até no mau, aceitávamos as coisas tal como elas são. Eramos crianças.

O cão começou a ladrar e as ovelhas deixaram de balir e encostaram-se umas às outras cheias de medo. Era Ela. Os seus olhos brilhavam como estrelas e a sua voz aquecia o nosso coração. Francisco perguntou a N. S.ª se ela conseguia voar como os pássaros. Eu fiquei envergonhada com a pergunta do meu primo e nada disse. Foi então que Ela começou a falar sobre o Santo Padre e a conversão da Rússia ao seu Imaculado Coração (agora que escrevo neste papel, veio-me à ideia que embora N. S.ª falasse bem a nossa língua, tinha uma estranha pronúncia, muito carregada). Lembro-me que, nesse dia, a Virgem disse à Jacinta que parecia a mais pequenina das matrioskas. Naturalmente, nenhum de nós sabia o que era uma matrioska, mas também não perguntámos. Francisco, sempre ele, perguntou a N. S.ª se podia transformar os olhos dele em colheres para levar e dar de beber a luz branca da linda senhora às outras pessoas. A Nossa Senhora sorriu com os seus lindos olhos azuis e encheu outra vez o nosso peito de alegria. Depois pediu-nos muito delicadamente para nos deitarmos e olharmos para o céu. “Respirem fundo cinco vezes e fechem os olhos. Tentem escutar tudo ao vosso redor.” Ouvíamos as ovelhas a mastigar (já se tinham habituado à presença luminosa da linda Senhora) e, de vez em quando, ouvíamos o cão a ganir baixinho, cheio de medo. O Francisco ergueu-se e disse todo entusiasmado que conseguia ouvir a LaSalete a cantar na eira, lá ao longe. A N. S.ª ergueu lentamente a mão direita e fez-lhe sinal ao meu primo para se deitar novamente.

“Agora quero que contem as contas do vosso terço; quero que as contem muito devagar, sem pressas e sem saltar números. Repitam cinquenta vezes”, disse Ela. “Se por acaso a vossa mente divagar, tragam gentilmente a vossa consciência de volta, não vos censureis por isso. É perfeitamente normal”. Depois de terminarmos a contagem, Francisco perguntou-Lhe se já podiam abrir os olhos. “Ainda não”, disse a Nossa Senhora, “Peço-vos que concentrem a vossa atenção no topo da vossa cabeça.” Assim fizemos. “Imaginem agora que o interior da vossa cabeça se enche da magnífica luz do Sol.” Foi a primeira vez que senti o sol dentro do nosso corpo. “Deixem que se espalhe pelos vossos olhos, pelo nariz, pela boca. A luz deve percorrer todo o vosso corpo, relaxem os vossos músculos, principalmente os ombros, acumulamos grande parte da tensão nos nossos ombros, permiti que o vosso corpo acolha o calor celeste. Sintam a grande estrela a brilhar dentro de vós. O vosso corpo é agora uma moringa que aos poucos se enche de calor e de luz até à ponta dos dedos dos vossos pezinhos.”

Jacinta interrompeu-a e perguntou-lhe o que era uma moringa. “É uma espécie de vasilha de barro”, respondeu muito pacientemente a Nossa Senhora.

FIM

Texto de Pedro Amaral e ilustração de Rui Ricardo

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