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Rua da Estrada ardente

Rua da Estrada ardente

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SE FOSSE Stª Bárbara a santa que se venera neste pequeno templo privado e público ao mesmo tempo, talvez este lugar fumegante estivesse melhor protegido da estultícia dos humanos e da distracção dos deuses. Como não está, tudo lhe acontece e por isso a estrada vai retorcida e empenada com curvas de 360º. Um fogo ardente aquece-lhe as costas, lavrando por pinhais, eucaliptos e matos. É o incêndio, também chamado de ignição produtora de combustão com frente activa por força da meteorologia adversa e outras ocorrências, combatida por meios aéreos e terrestres operacionais bombeiros dispositivos técnicos e populares, etc. nas palavras gastas a que o assunto se acomoda.

Diz o empastado das leis que a gestão de combustível é a criação e manutenção de descontinuidade horizontal e vertical da carga combustível nos espaços rurais, através da modificação ou da remoção parcial ou total da biomassa vegetal … no mosaico de parcelas de gestão do combustível que é o conjunto de parcelas do território no interior dos compartimentos definidos pelas redes primária e secundária, estrategicamente localizadas, onde através de acções de silvicultura se procede à gestão de vários estratos de combustível e à diversificação da estrutura e composição das formações vegetais, etc., conforme reza no Decreto-Lei nº 124/2006 de 28 de Junho. Perceberam, pois não?

Que mal que está a correr a gestão de combustíveis! A descontinuidade horizontal e vertical da carga não funciona, há biomassa a mais, o mosaico escacou-se em parcelas e os vegetais saíram das formações depois das acções de silvicultura regadas com aguardente.

No tempo da aldeia da roupa branca, os montes por aqui andavam catados até ao osso por via dos matos para as cortes ou do pasto para os animais. Árvores eram poucas e não havendo nada para arder, nada ardia a não ser as queimadas para espevitar a erva das ovelhas e das cabras. Depois de séculos acabou finalmente essa agricultura da pobreza, do trabalho que não mata a fome e da subsistência. Que descanse e não volte mais e quem tiver saudades que vá lá fazer um estágio não remunerado.

Os tempos salazarentos fartaram-se de pregar eucaliptos e pinheiros – era a floresta para produzir madeira barata para a pasta do papel ou para os aglomerados. Ficou tão barata entretanto que agora não vale quase nada. Se estiver numa encosta íngreme, nem sequer as máquinas lá chegam. Entretanto, o eucalipto segue a sua biologia de sobrevivência todo o terreno, trepando a eito por todo o lado por artes de resistência e tenacidade tais que até na cabeça de um tinhoso cresceria se lá houvesse lugar.

Quem vai limpar, ou cortar, ou domesticar, ou fazer topiária num arvoredo que não retribui o mínimo que nele se possa gastar? Acaso não sabeis que trabalhar para aquecer é só no ginásio e nem todos lá vão? Pois é. Perdida a economia da paisagem, inflamou-se-lhe o corpo e arde intensamente.

Gaston Bachelard já explicou abundantemente na psicanálise do fogo[1] o poder ultra-vivente das labaredas, fogo íntimo e universal; no céu e nas profundezas dos infernos; latente, em cinzas; um vulcão de desejo na mente do incendiário, renascido, vingativo, purificador, caloroso, contraditório: por isso é um princípio de explicação universal e, como no mito de Prometeu, um conflito permanente com os deuses que pensavam que o fogo tornaria os humanos tão poderosos quanto eles e por isso lho negavam. Coisas muito complicadas que provocaram a Prometeu problemas constantes no fígado e ataques de rapinas. Foi há muito.

No meio da fumaça, não se sabe como organizar agora esta alquimia enlouquecida da ecologia do fogo, do ciclo infernal do eterno retorno, nasce, cresce, arde, nasce, cresce e volta a arder, o verão, as ondas de calor, o alerta laranja, a televisão, os comentadores, o drama incandescente, a família aos gritos: (…) Tudo se torna complicado, mais do que se possa imaginar e, ao mesmo tempo, mais delicado do que se poderia conceber. O dedo gelado do medo, percorrendo o meu corpo, amornava-se à temperatura do sangue. Mas, não posso conceder demais aos meus medos, visto que, agora, não é tempo de agir, mas apenas de esperar. Que Farei Quando Tudo Arde?[2]

Por Álvaro Domingues autor de A Rua da Estrada.

[1] Gaston Bachelard (1949), La psychanalyse du feu, Gallimard, Paris.

[2] António Lobo Antunes (2001), Que farei quando tudo arde, D. Quixote, Lisboa.

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