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Rua da estrada à roda

Rua da estrada à roda

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NO INÍCIO os humanos eram muito primitivos, como se sabe. Por isso se registavam no singular como o nome de Homem Primitivo. Por simpatia, as mulheres também eram primitivas. Casas não tinham.

Para trabalhos que para sua sobrevivência tinham que realizar, poucos meios possuíam – paus, pedras lascadas, zagaias, fundas, armadilhas. No inverno cobriam-se de peles e tremiam. Então, rolando pauzinhos, acendiam fogueiras, grafitavam paredes, faziam filhos e poliam ossos. Assim viviam. Penosas caçadas, mudos de espanto perante os cometas e o firmamento, o sol, a lua, o passar das nuvens, a roda do tempo. Perante a morte, as mesmas aflições de hoje. Perante o rolar das pedras pelos montes abaixo para abater mamutes, um abismo nunca comparável com a mística dos rolling stones.

Talvez o plano inclinado, a alavanca ou a roda lhes tenham suavizado a sua rude condição, permitindo-lhes pensar o que pudesse ser uma máquina; um dispositivo para lá da força muscular, da lança que prolonga o gesto, do pensamento. Das alavancas vieram abridores de caricas, pinças e quebra-nozes. Um plano inclinado deu em auto-pista que galga montanhas ou em hélice de rampa pelo interior de uma torre acima. Um parafuso é um plano inclinado enrolado num cilindro. Uma sequência de toros para mover uma carga pesada é como um sistema de rodas. Duas rodas presas a um eixo, rodas são, articuladas umas com as outras. Depois viriam rodas dentadas, roldanas. Um carrinho de mão combina uma alavanca e uma roda. Rolamentos são espécie de rodas a três dimensões e tudo a partir daí já começa a ser máquina e engrenagem. Zingarelhos em evolução.

A ciência dos mecanismos engenhosos foi depois evoluindo até aos robôs, quais máquinas complexas, multi-funcionias, programáveis, computorizadas, regurgitando electrónica, mecânica, electricidade, automatismos, sensores, motores, braços e outros animais, fios e tubos de sangue quente para trabalhar.

Era isto um devaneio para tentar abarcar este enfiamento de rodas paradas cercando duas casas iguais-diferentes descontando as chaminés e a paleta cromática, ora concordante no ocre-amarelo, ora branca e cinza em coloratura neutra sobre um mar de asfalto que parece sobrar para lá do pilar que sustém a força petrificada do dispositivo rolante aprisionado nos muros. São as rodas da fortuna de Boécio, tudo o que a inconstância, a mudança contínua ou a contingência podem oferecer aos humanos conformados no esquecimento de si próprios e entregues à sorte: “ se abandonares as tuas velas à mercê dos ventos, não avançarás à medida dos teus desejos mas em direcção aos acasos onde eles te conduzirem”[1]. Assim é.

Não consigo vislumbrar mais nada nesta história que tinha forçadamente começado no homem das origens porque algo me dizia que havia aqui alguma constante que ia beber a essa fonte. Estava completamente errado, não faltava só inventar as casas e o asfalto ou as chaminés. Faltava, sobretudo, inventar a roda e sem isso não haveria os automóveis que enchem este estacionamento de restaurante nas horas do comer.

Por Álvaro Domingues autor de A Rua da Estrada.

[1] Anicio Boécio (c. 480-524/5),  La Consolación de la filosofía (trad. Por Pablo Masa), Ediciones Perdidas, Almeria, pp.59-60.

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