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Lucinda

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A TERRA DE MELRES É BARRENTA, quase vermelha, o pó do trilho tinge de escarlate as botas de água do Caga-na-Marca. É encarnada a terra não muito diferente da cor do sangue que corre nas veias do mineiro que é vermelho escuro, carregado, tipo sangue de carrapato e meio galego.

Já se enxerga em Moreira onde tu és plano e largo e espraias-te preguiçoso e quase vens beijar as beiras do caminho que percorre sinuoso a tua margem direita. É lindo o verde persistente da ribeira de Melres enfeitada de choupos, castanheiros e frondosas nogueiras perfilados a todo o comprimento do espaço que te ladeia. Esta é a terra que foi do mel; a doçura do precioso néctar lambareiro, escorria pelas fraldas das serras em golfadas de abundância. Em Vilarinho, Bronzeio e Moreira, alinhavam-se nas várzeas os cortiços e as colmeias onde enxames de abelhas saíam em busca do pólen da urze e do rosmaninho que depois transformavam em delicioso mel. Terra rica em tudo, até de lavoura com campos estendidos por todos os lados pendurados nas encostas e vales da serra das Banjas e de Santa Iria. Já tinha sido vila em tempos e guarda na fisionomia das casas, traços de poder e de glória como direito adquiridos no passado. Melres, como as outras terras circunvizinhas, parou no tempo. Anos e anos de sono dolente a aguardar o futuro que vinha distante e já se antevia por de trás das nuvens do isolamento e do esquecimento que tapam o azul dos céus das terras do interior. A força dos homens daqui esbarrou de frente com o poder da Pátria sôfrego de maior força centralizadora. Melres tinha gente que a troco de moderadas gorjetas, recolhia os dinheiros em volta e pagava a Aguiar de Sousa que por sua vez pagava a Lisboa terra que desprovida de sentido solidário, se recreava em festas e grandes eventos, enquanto o povo trabalhador gemia com fome. De nada tinham valido as rezas na capela do Senhor dos Passos. Dali, não fora a fé que persiste e se recomenda, só se aproveita a memória do tempo que faz nos dias das festas para acções meteorológicas:
— Passos molhados, Páscoa enxuta, ou vice-versa.

Em Moreira, lugar de terra barrenta fundia-se o barro na fábrica da telha e de tijolo burro mas até essa rudimentar indústria fechou por imposição da empresa carbonífera do Douro, tornando assim a Vila cada vez mais dependente dos campos, de ti e das minas de carvão.
Houve cenas dramáticas no lugar de Cimo de Vila. Abençoado pela capela do Senhor dos Passos que o protege, criava em seu redor as mais belas e perfeitas donzelas da freguesia. Procuram-nas aos domingos e nos dias de feira, abastados lavradores de terras vizinhas e até cavalheiros de mais longe.

— Sai da janela Lucinda! Esse homem vai ser a tua desgraça cachopa, é mineiro, morre-te na mina e deixa-te viúva com um bando de filhos nos braços. Tens pretendentes mulher, olha o Toninho de Passos, prendado, limpo com quintas e tudo!

Era a Rosa Marreca a avisar a filha que pressentia não tomar juízo na cabeça. A Rosa era tudo menos marreca. O sobrenome herdou-o dos avós que nem sequer conheceu. Era uma mulher bem feita, alta de rosto comprido onde se notavam traços da beleza que tivera na juventude. Cobria os longos cabelos negros, que às vezes soltava pelos ombros abaixo, com um lenço de merino amarelo e vermelho. A saia de roda negra pela condição de viúva tinha bordados a branco temas regionais à base de flores silvestres. De linho era a blusa branca rendada e nos pés desaconchegados de meias, usava umas chinelinhas negras de brilhante verniz. A Lucinda ouvia mas fazia de conta que não lhe dizia respeito semelhantes avisos, esta conversa era para boi dormir, não era a mãe quem iria casar, era ela e, nisto de amores, as pessoas pendem para onde calhar. A moça era formosa, corpo de mulher talhado por mãos de artista. Tinha na cara de faces coradas, um nariz pequeno e bonito e os olhos eram de um negro impressionante e a cor morena do rosto, condizia com os cabelos soltos pelos ombros, que eram também negros e aveludados o que a tornava assim tão graciosa. Tinha a quem sair a Lucinda, a mãe era uma estampa no passado.

— Lá está ela outra vez! Ò mulher meta-se na sua vida e deixe os outros em paz. Até parece que você não casou!
Tinha de se calar, aquela última frase cortava-lhe o coração. Era verdade que tinha casado com o Lampreia, antes não o tivesse visto na festa de S. Domingos mas teve de ir lá pois era a única oportunidade de poder estar perto dos seus admirados, o conjunto de António Mafra e de ouvir ao vivo aquelas músicas e canções ao som das quais muito bailou até esse dia. Foi assim de repente, não se sabe como. Cinco domingos de namoro e, quando deu conta já estava na igreja. E depois!? Foi aquela miséria do costume. Quatro anos juntos e três filhos para criar. E que é feito do Lampreia? Está em frente à Casa Grande, no cemitério, morto, esborrachado na mina que foi a sua perdição. Bem lhe dizia ela muitas vezes:
— Ò Homem sai da mina! Olha o que aconteceu ao Manel do Boi, ao Cristóvão, ao Raposo. Ficaram lá todos, mortinhos, esganados no meio da negrura do carvão!

Foi tempo perdido, ele não lhe deu ouvidos, preso pela ideia da reforma que ambicionava, foi tentando a sorte ano após ano sem nunca atender aos avisos que vinham de muitos lados. Perdeu tudo, a reforma e a vida. Ao ver agora  a filha ir pelo mesmo caminho, tentava desesperadamente mudar a agulha dos carris a esse sinistro comboio que avançava e ameaçava deitar tudo a perder. Tentava apagar com avisos o fogo daquele amor ardente que pressentia vir a ser de perdição. Quanto mais ralhava mais se convencia de que não valia a pena continuar. À vinda e à ida, o mineiro passava por baixo da janela da cozinha e, a filha apaixonada, não tirava os olhos daquela figura andrajosa.

— Parece bruxedo! O que é que ele te fez mulher!?
— Meta-se na sua vida, deixe os outros em paz! — Respondia a Lucinda acenando ao Alfredo.
O tempo, esse maldito algoz que nos amarra e nos faz rodopiar, haveria de dar razão à Rosa; a Lucinda casou com o mineiro que não morreu na mina. Reservara-lhe o destino um fim ainda mais cruel. Chamado pela tropa, não quis fazê-lo sem antes selar aquele amor pelos sagrados laços do matrimónio. A Lucinda estava grávida.
Naquele domingo de Agosto quem passava na rua das Vergadas ou assistia à missa na igreja Matriz, viu aquele espanto de mulher resplandecente, enfeitada como nunca, de grinaldas nos cabelos e segurando nas mãos trémulas um raminho de rosas brancas que simbolizavam a pureza do seu doce coração levando nos olhos um brilho intenso de felicidade, e a cobrir aquele corpo airoso, um vestido todo branco alugado ao Zé Maria Tendeiro, completava o deslumbramento daquela aparição que desafiava todas as leis que os homens insensatos criaram para esta situação específica. Foi efémero o tempo de felicidade resumido nuns poucos de fins-de-semana em que ela ocupou o tempo a lavar, a secar e a passar a ferro as roupas da tropa. Os domingos ficaram todos lancetados pelo apitar do comboio prenhe de militares na estação de Campanhã. Embarcou para Angola e, um mês só decorrido, ela recebeu a par com um aerograma do marido, o telegrama fatal e lacónico:
“Alfredo Duarte Saraiva morreu em combate.”

Primeiro os olhos abriram-se espantados, secos, depois, o mundo inteiro envelheceu naquele instante. A dor, a suprema dor do ser humano, esmagou-lhe o coração. Qual facada no peito, qual arrancar das vísceras em corpo vivo. É dor de mais, é algo que não se consegue traduzir em palavras, é o fim repentino de todas as coisas, o fim do próprio universo. Rompeu-se a presa de Vilarinho do Monte, as lágrimas desciam por aquelas faces belas soltas, imparáveis, tremendamente líquidas. Num gesto autómato pegou na filhita ao colo e, com toda a força do afecto, apertou-a com alento contra o peito num abraço de tamanha plenitude que comoveu o próprio mundo. A Lucinda parecia adivinhar o mundo de solidão que a esperava, a loucura, a decadência que acarreta semelhante perda e o desalinho em que iriam desbotar o resto dos seus dias. A partir daqui, fecham-se os olhos dos demais, ninguém irá querer ver a sua dor, ignorá-la-ão quase de propósito e só a morte pode vir um dia ser companheira desta mulher agora sozinha. De negro se vestiu, negros foram todos os gestos, todos os pensamentos, todos os dias e todos os anos. Sentiu a indiferença de todos e a cobiça de alguns que se queriam servir dela. Ser mulher viúva, equivalia a transformar-se num ser vivo com que ninguém se quer cruzar. Correspondia sofrer ao sol de todos os dias e a morrer devagar todas as noites. Viúva de mineiro deixava de ser gente.

A Rosa, sua mãe, por experiência adquirida, sabia bem as tremendas dificuldades que a vida colocou à filha. Também ela sofria as mesmas dores, as mesmas mágoas calada esse silêncio atroz que se gera no caos de algumas vidas onde não chega o abraço solidário a mão amiga, o lenço que pode secar as nossas lágrimas.
— Minha Senhora de Fátima ajudai-me. Tende compaixão de nós, Senhor dos Passos. Senhor Jesus valei-nos!

A Rosa rezava ajoelhada na laje fria da singela cozinha em apelos desesperados àqueles em quem tinha maior devoção. Pedia clemência pelo infortúnio que por duas vezes lhe bateu à porta sem aviso prévio e sem o merecer. Não se sabe se essas orações foram ouvidas lá no Céu onde todos depositam esperanças mas o que consta é que as duas vivem o resto dos seus dias, felizes no lugar de Branzelo de onde se avista um rio esplendoroso que és tu meu amigo.

Por Manuel Araújo da Cunha publicado originalmente in Palavras – Conversas com um rio, edição Edium Editores, março 2011.

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