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Rua da Estrada da passadeira para a ruína

Rua da Estrada da passadeira para a ruína

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JOHN Ruskin (1819-1900), o celebrado escritor, poeta, crítico de arte e arquitectura, desenhador, pintor, defensor de causas sociais, utópico, o homem que defendia o trabalho pelo prazer, a aprendizagem do mundo pelo desenho que ensinava aos operários e a outros não letrados, o ultra-romântico e o muito mais que se pode dizer de tais humanas raridades, pensaria desta casa-ruína que a sua digna condição era permanecer como ruína e assim devolver-nos continuamente a sua agitação habitada por silvas, heras, ratos, azulejos da Vista Alegre ou da Aleluia e outros prodígios da criação.

Talvez Ruskin se enganasse. O bom nome das ruínas clássicas que ecoa nas colunas de pedra no pátio ao cimo das escadas, vai-se decompondo em pó, caliça e ferros torcidos na maior parte deste corpo desfazente. A tensão que a ruína transmite entre o tempo que a habita e a aproxima da longa duração ou da eternidade, seja lá o que isso for, e o seu contrário, a inexorável desaparição das coisas, o desgaste, resvalaria para este último abismo e aí ficaria a ilustrar outros sentimentos – incúria, decadência, resíduo seco de sensibilidade para as coisas incomuns.

Escreveu Ruskin que as ruas das nossas cidades são o exemplo da colisão da diversidade do gosto; e são tão notáveis pela mais completa ausência de qualquer preocupação de embelezamento, como desgraçadas por todas as variedades de abominação (que venha o Ruskin também à Rua da Estrada)[1].

Parece lógico e claro. A questão está em saber quem e como legitima isso a que se chama, em matéria de gosto, abominação ou embelezamento. Não faltará quem pense que tais complicações são simples e decorrentes da ordem natural das coisas; que é tudo tão claro como afirmar que chove e que a chuva molha.

Ruskin achava que nas belas-artes, o talento e o gosto eram mérito dos chosen few, da elite escassa educada nos salões e nas academias, os mesmos que depois concediam a fama e o encorajamento ao artista. Em arquitectura pensava que não, simplesmente porque a capacidade de fazer, mandar fazer, seguir, contrariar, subverter, etc., estava largamente repartida por muitos e diferentes projectistas e clientes e que era impossível confinar o julgamento de gosto e, muito menos ainda, dar o privilégio da legitimidade a essa pequena casta.

Há que tempos que isto é assim. Durante os milénios em que os poderosos e os educados eram tão poucos, era fácil impor padrões de gosto e confundi-los com o “bom-gosto” de quem os praticava, esperando dos outros que tentassem apenas estarrecidamente admirar. Era garantia de estatuto social. A grande maioria não tinha como aproximar-se. Eram os rústicos e simples de espírito, escravos da terra ou de outra qualquer senhoria. Outros tentavam com armas desiguais mas, não sendo capazes de dominar os códigos dos iniciados, faziam misturas, falsetes, erros de visibilidade e pontaria. Eram os novos-ricos a querer trocar dinheiro por capital de notoriedade e fino verniz social que os verdadeiramente herdeiros desses predicados logo topavam e cruxificavam. Não há elites sem manobras de fortificação do elitismo.

Partiram-se entretanto os monopólios do gosto, do bom, do mau e do nem sim nem não, da alta e da baixa cultura, do salão e da plebe, do popular e do massificado, do puro e do misturado, etc., etc. Viva então o critério da biodiversidade e continue o mundo a girar a ver se se resolvem outras coisas bem mais importantes do que o gosto, o desgosto, o sal ou o insonso.

Por Álvaro Domingues autor de A Rua da Estrada.

[1] John RUSKIN (1837), The Poetry of Architecture, p.25,  consultado em Março de 2017 em http://www.gutenberg.org/files/17774/17774-h/17774-h.htm

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