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Jorge Pinheiro (1931)

Jorge Pinheiro (1931)

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1780

FOI um dos Quatro Vintes da Escola de Belas-Artes do Porto, com Ângelo de Sousa, Armando Alves e José Rodrigues, e talvez tenha sido esse dos poucos tempos em que se atirou para a ribalta. Discreto, estudioso, vive sozinho num apartamento em São João do Estoril, em cujo sótão tem o seu ateliê luminoso e ordenado. Andou entre a pintura figurativa e a abstrata, e diz que não sabe explicar o que o faz decidir por uma ou pela outra. A conversa tranquila com Jorge Pinheiro foi pautada pelo som antigo do relógio de pêndulo, um dos vários que possui, numa casa recheada de livros, de pintura, de escultura e de muitas memórias.

Como acolheu a proposta de fazer uma exposição em Serralves?

Com enorme surpresa, não esperava nada. Foi uma ideia que não sei se partiu do Pedro Cabrita Reis se partiu do museu, não sei quem pôs o ovo. Conheci Serralves ainda não era museu.

Como tem sido a preparação?

Muito trabalhosa. Estou muitíssimo grato ao Pedro porque tem trabalhado imenso. E muito grato também às pessoas de Serralves, têm sido impecáveis.

É só pintura ou também desenho?

É pintura, pouco desenho, coisas tridimensionais e outras que não sei como hei de chamar, são autoportantes mas não são tridimensionais, coisas recortadas em madeira, vêm da primeira exposição na Buchholz [1968].

Nasceu em 1931 em Coimbra. Foi lá que começou os estudos?

Estudei caoticamente. Primeiro fiz um curso comercial, e odiava a contabilidade de tal maneira que quando fiz esse exame ouvi um dos membros do júri dizer – “aí vem o homem que liquidou o capital da empresa”.

Porquê o curso comercial?

Foi onde o meu pai me meteu, ele era contínuo na escola. Eu queria fazer Belas-Artes. Os cursos industriais davam acesso a Belas-Artes mas no comercial não tínhamos desenho, tive de fazer depois o liceu.

Queria estudar pintura?

Queria fazer Arquitetura. Conheci o arquiteto Carlos Almeida [1920 – 2009], trabalhei no ateliê dele como desenhador enquanto fazia o liceu. Ele veio a ser preso pela Pide e torturado. Com o 5.º ano podia entrar em Pintura, para Arquitetura era preciso o 7.º. Vim para Lisboa e inscrevi-me em Pintura, para ir fazendo o 7.º ao mesmo tempo, com a ideia de ir para Arquitetura. Escrevi uma carta ao meu pai a perguntar-lhe a opinião. Inacreditavelmente, perdi a carta de resposta dele, em que dizia que a Pintura era uma coisa tão bonita e que achava que eu era pintor. E eu segui a opinião dele. Depois arrependi-me.

Gostava de ter sido arquiteto?

Gostava, porque pode pintar-se sempre. Muitas coisas que faço têm o raciocínio da construção. Fiz o 1.º e o 2.º anos em Lisboa, mas a escola era terrivelmente académica e fui para o Porto, que tinha o Carlos Ramos, um diretor excecional. Quando já era assistente, em 1966, tive uma bolsa da Gulbenkian e um dos objetivos era visitar escolas da Europa. A única melhor que vi foi o Royal College of Art. Embora a escola fosse muito pobre, a mentalidade e o critério eram de uma abertura imensa, contrariamente à de Lisboa, onde era impensável fazer pintura abstrata.

É incrível como havia ao mesmo tempo duas escolas tão diferentes.

Graças à personalidade do Carlos Ramos, que tinha como aliados os jovens assistentes. E tinha lá adversários, homens da idade dele, dois arquitetos, nem vale a pena citar os nomes.

Não teve a tentação de mudar lá para Arquitetura?

Não, já estava decidido, e comecei muito cedo a ensinar. Os cursos de Pintura e Escultura não se faziam em menos de seis anos, quatro anos de frequência obrigatória do curso especial, e depois o curso superior à moda do ancien régime, com concursos. Ao fim do especial, já podíamos ensinar. O que é que um pintor ou um escultor faziam naquele tempo se não ensinar? Não se vivia da pintura, era impensável. Ou fugiam para Paris, como alguns, ou então iam para o ensino, e era fácil arranjar uma escola em qualquer ponto do país.

Foi dar aulas para onde?

Como tinha uma nota muito alta, fiquei na Soares dos Reis. Fui uma desgraça em termos pedagógicos. Eu sabia lá o que era ensinar e disciplinar matulões adolescentes. Passei o ano a pôr os alunos na rua. No ano seguinte fui para a Póvoa de Varzim, depois para a Gomes Teixeira, as duas do ciclo preparatório. Entretanto acabei o curso e fui convidado para assistente. Naquele tempo era por convite, não era por concurso. E foi a minha salvação, fiz carreira por ali.

Como criaram Os Quatro Vintes?

Fomos colegas de curso no Porto, éramos do mesmo ano – o Ângelo de Sousa e o Zé Rodrigues, que infelizmente já cá não estão, o Armando e eu que cá andamos, até ver. Foi uma tentativa de sobrevivência, juntámo-nos e jogámos entre o marketing e a ironia, porque houve uma inflação enorme de 20. Alguns dizem, e eu admito, que era para roubar alunos a Lisboa. Grandes nomes, como o Nuno Portas, defenderam tese ao Porto, porque a escola tinha mais prestígio e o Carlos Ramos recebia-os bem. Foi um fenómeno estranho, as notas foram inflacionadas e houve vários vintes, não fomos só nós os quatro.

E então juntaram-se os quatro.

Era um prestígio ter vinte, por outro lado, era uma ironia. Fizemos vários cartazes e outras coisas. Estivemos juntos pouco tempo, porque éramos muito diferentes em termos de personalidade e de trabalho. Éramos apenas amigos e mais nada. Fizemos poucas exposições, uma no Porto [Galeria Alvarez e Cooperativa Árvore, 1968), uma em Lisboa, na Sociedade Nacional de Belas-Artes [1969], uma em Paris [Galerie Jacques Desbrière, 1970] e ainda outra na Galeria Zen do Porto [1971]. E depois acabou, como tinha acabar. O Armando já nessa altura estava muito virado para as artes gráficas e arranjou um cartaz – ainda não havia photoshop – e com o maço dos cigarros 20-20-20 pôs lá quatro vintes. Coisas deste género.

Conseguiu vender nesse tempo?

Quando terminei o curso, fiz uma exposição de desenhos na livraria Divulgação, de um livreiro excecional, o Fernando Fernandes, mais tarde dono da Leitura. Fazia pequeninas exposições no primeiro andar. Com grande surpresa minha, vendeu-se praticamente tudo.

Quanto custava um desenho seu?

Não me lembro, deve haver ainda aí os catálogos. Em escudos, eram dez reis de mel coado. Os malditos euros deram cabo de mim. Eu penso em escudos, faço sempre a transferência.

Fazendo isso, parece tudo caríssimo.

Mas a minha reforma também é em escudos, vai dar tudo ao mesmo. Arranjei um esquema que não é caro nem barato, é a mesma coisa. Um senhor chamado Foucault escreveu um livro notável chamado Les Mots et les Choses que, na minha modestíssima opinião, é um dos mais extraordinários do século XX. Ele explica isso: chamar escudos ou chamar euros é igual. Se nos habituarmos a chamar escudo, é escudo. E também não tenho muita simpatia pela maneira como se têm comportado os nossos camaradas da Europa. Não esqueço que quando a senhora Merkel cá veio foi recebida num forte, o que é uma desconsideração quer da parte de quem a recebeu quer da parte da senhora que veio. Sentiu-se tão desprotegida, ela e o mordomo?

Começou a dar aulas nas Belas-Artes do Porto em 1963. Já não era uma desgraça pedagógica?

Mas eu gostei muito de trabalhar no ciclo preparatório. Encontrei miúdos de uma criatividade fantástica. O programa de desenho era excecional, de um homem chamado Calvet de Magalhães. Era o eixo em torno do qual giravam as disciplinas.

Em Belas-Artes deu aulas de quê?

Composição e Pintura.

Gostava de ser professor?

Muito. Gosto de pintar, quando tenho necessidade disso, não é sempre. Posso estar muito tempo sem pintar. Mas no ensino foram 40 anos. Foi o que me encheu a vida, foi o que gostei de fazer.

Mais no Porto ou em Lisboa?

Gostei muito de trabalhar no Porto até à morte do Carlos Ramos (em 1969). Depois a escola ruiu completamente. A escola era ele. Fazia questão de nos tratar pelo nome quando nos encontrava na rua. Nós éramos poucos, nos três cursos – ele chamava-lhes as três irmãs de leite [Pintura, Escultura e Arquitetura]. Lutou até ao fim para que não se separasse a Arquitetura porque achava que era proveitoso para todos. E era. Em Lisboa tive sempre bons colegas, tudo bem, só que je n” étais pas à l”aise, já não era a minha escola. Embora tenha trabalhado em Lisboa mais anos.

Falou numa bolsa que o levou a ir ver escolas na Europa. Foi também a grande possibilidade de ver pintura?

Aqui só tínhamos os livros e as reproduções raramente eram de qualidade. Tive duas bolsas, nenhuma como pintor, ambas como professor. A primeira foi para visitar escolas de belas-artes e obviamente vi museus. Foi um ano pela Europa toda, a viajar de terra em terra. Não desenhei nada, não pintei nada.
A segunda bolsa foi na onda do estruturalismo, andávamos todos nessa. Pedi uma bolsa para fazer um seminário de Semiótica da Pintura na École des Hautes Études en Sciences Sociales, pensando num programa que fiz na cadeira de Composição. Estive em Paris um ano e também não pintei nada.

De que gostou mais na viagem?

Amesterdão foi o sítio mais importante para mim. O Stedelijk Museum era dirigido por um homem formidável que organizava exposições durante um período relativamente curto. Cada exposição era uma verdadeira lição. Para mim, foi importante essa reflexão. Quando regressei fiz uma peça, foi a minha primeira peça abstrata, e intitulei-a Homenagem a Amesterdão, está no Museu de Arte Contemporânea de Lisboa. Fiquei muito agradecido àquele museu pelo simples facto de as coisas estarem penduradas de tal forma, em termos museológicos bem organizadas. Eles têm uma coleção enorme de desconstrutivistas russos, têm coisas excecionais.

O que lhe interessava ver quando foi? Queria ver as coisas do século XX ou arte antiga?

Também a arte antiga. Eu tinha de fazer relatórios para a Gulbenkian e relatava tudo quanto visitei. Todas as escolas, com quem conversei, o que vi em cada museu, o que eu vi e o que me interessou. Enviava relatórios regularmente, creio que todos os meses.

E em Itália o que viu?

O deslumbramento que nós sabemos. A Itália é um deslumbramento, é arquitetura, pintura, tudo. Tinha começado por Madrid, depois Barcelona e aí meti-me num barco para Nápoles. Nunca mais na minha vida quero barcos. Ainda por cima era um barco americano, com os americanos para um lado e os não americanos para o outro: eu, uma rapariga espanhola e uns malteses. Lá cheguei a Nápoles, muito enjoado. Uns dias depois, em Pisa, aconteceu uma coisa engraçada numa trattoria pequenina. O dono recebeu-me muito bem e fez-me uma piza, mas eu abominei. Acho que nunca tinha comido piza.
À hora da minha morte vou pedir a todos os santos que não me levem para o inferno por causa disto, é o maior pecado da minha vida. O homem foi gentilíssimo, eu era o único cliente, e no fim eu pedi una bistecca.

E já gosta de piza?

Não gosto. Non mi piace.

Como viajava?

De comboio, como calhava, e depois instalava-me nos sítios mais engraçados. Em Milão fiquei na casa de uma senhora muito snobe que alugava quartos. Estava a conversar com ela na entrada, tocaram à porta e aparece um rapazito americano de cabelo comprido, com roupas de hippie. A senhora, com pouca simpatia, disse-lhe que não tinha quarto e ficou a resmungar. Minutos depois chegou um outro exatamente com o mesmo aspeto, mas alemão, e ela, toda sorrisos, alugou-lhe um quarto. Perguntei porquê. E ela respondeu: perché i tedeschi sono grandi signori[porque os alemães são grandes senhores]. A senhora ainda era do tempo do Mussolini!

De Itália foi para onde?

Para a Suíça. O ambiente era hostil, tinha havido problemas com uns italianos. Fui para Paris, depois Amesterdão. A minha mulher foi ter comigo à Holanda e fomos para Inglaterra e voltámos para Portugal.

Há pouco disse que a pintura é uma necessidade.

A pintura é uma catarse. É uma necessidade quando tenho necessidade.

Nem sempre tem?

Nem sempre pinto, posso estar muito tempo sem pintar, não me faz mal nenhum. Quando dava aulas dediquei-me àquilo a sério, dava-me um prazer enorme. A relação com as pessoas é muito gratificante. Quando tenho necessidade de pintar, pinto, quando não tenho necessidade não pinto. Se eu quiser fazer um bonequinho bem feito sem precisar de o fazer não sai bem feito. É impossível, não sai.

O primeiro desenho seu que vi foi um estudo para a série da mesa com o pão. Como apareceu esse tema?

A mesa com o pão é a nossa cultura, de nós todos. Poderão dizer que é a nossa matriz cristã, se calhar é, tudo isso faz parte da nossa cultura. O pão surge-me ciclicamente por razões que não vou agora inventar mas todos nós sabemos, e surge em vários contextos, sempre contextos deste tipo. A imagem é diabólica, é terrível. Na figuração, a imagem transporta-nos, mesmo sem querermos, transporta não só o que nós sabemos e não sabemos que estamos a dizer, como ainda por cima gera sentidos infinitos. A abstração é outra coisa. Para mim, a abstração é uma coisa muito racional, equilibrar formas que podem ser eventualmente belas, perfeitas, mas não têm a capacidade, benéfica ou maléfica, que tem a imagem.

Mas andou entre as duas.

Nunca simultaneamente. Quando tenho uma grande necessidade de qualquer coisa volto à figuração. É como um livro em que já peguei não sei quantas vezes na minha vida, nos maus momentos, O Mito de Sísifo, do Camus. Há momentos em que não sei porquê vou instintivamente à prateleira buscá-lo. E a pintura figurativa se calhar também é assim. Preciso de dizer qualquer coisa para lá da pintura, qualquer coisa que talvez pudesse ser substituída pela palavra, e recorro à imagem. O discurso que a pintura abstrata veicula não é facilmente verbalizável, ao passo que a pintura figurativa é aquilo que pejorativamente se diz a pintura literária. Penso que só pode ser essa justificação, e estou a tentar dar-lhe uma resposta, porque eu próprio não sei por que essa necessidade surge.

Faz muitos estudos. Não é chegar a uma tela e começar a pintar.

Faço muitos estudos, na figuração. Preciso muito de estudos prévios. Há uma ideia inicial vaga, a tal preocupação que não sei o que é, uma necessidade de qualquer coisa. E até pode acontecer que quando, ao longo do processo, essa qualquer coisa se torna explícita é-me de tal forma incómoda que destruo o quadro. Uma vez estava a pintar uma figura de mulher grávida. Nem precisava de composições prévias, era um retrato que inventei, estava a pintar de cor uma figura feminina. Só passado talvez um mês reparei que estava a fazer o retrato da minha mulher que já tinha morrido, grávida. Foi de tal forma impressionante que virei o quadro para a parede e aí esteve anos. Depois acabei por oferecê-lo a uma pessoa por quem tenho muita consideração. Continuava a incomodar-me. Isto é profundamente catártico, mesmo.

Essa foi a situação mais extrema?

A mais extrema, em que não tive dúvidas nenhumas de que o nosso subconsciente manda em nós despudoradamente.

Tem uma série de quadros com o Charlot. Como apareceu?

Todos nós, ou alguns de nós, temos preocupações sociais. O Charlot era uma personagem que me permitia referir-me a outras coisas. Era uma espécie de compère ou coisa que o valha. [começa a folhear um livro com a sua pintura]. Lembra-se do Abu Ghraib e dessas histórias? Aqui está a criança vítima disso. São citações, esta é aquela fotografia do Robert Capa, famosíssima, isto é uma citação não sei de quê. Lembra-se de quando o Saddam deitou gás sobre os curdos? São sempre histórias, cada um tem a sua história. Por exemplo, este é o Salazar, pura e simplesmente. Esta é uma tia minha que eu pintei de cor depois de ela morrer. Aqui está o Charlot. Isto é de uma imagem de um jovem a atirar um cocktail molotov. Isto é a bicicleta destruída que é um filme só meu, do meu filho. Isto é um conjunto de citações.

Aqui está o Fernando Pessoa.

Outra vez as citações. O Fernando Pessoa, o Gago Coutinho e o Sacadura Cabral, o Bugio. É um discurso nostálgico, é um tempo que parou, uma menina que olha perplexamente para nós. Aqui é uma onda em que recorri às coisas do passado. No final dos anos 1990, houve em Itália um momento de revivalismo. Era um momento em que o mundo não sabia bem o que havia de dizer – e também agora não sabe muito, andamos todos bem aflitos. Os italianos recorreram ao seu riquíssimo passado, e eu fui um pouco tocado por isso. Isso é retirado de uma estela funerária, isto é uma citação da Ilha dos Mortos, do Arnold Böcklin [pintor suíço, 1827-1901]. Isto é mórbido que se farta.

E este que tem aqui em casa?

Este é a cabeça da mulher de O Couraçado Potemkine [filme de Sergei Eisenstein, 1925], a mulher que vai com o carrinho de bebé e apanha um tiro e o carrinho vai pelas escadas abaixo. Ela exibe o retrato da criança sobre um pano. Eu tive um irmão colaço que já morreu.

O que é um irmão colaço?

A minha mãe não tinha leite suficiente para mim, e a mãe dele, que era amiga dela, estava a amamentar o filho e amamentou-me a mim. Ele era muito católico e ficava indignado perante este quadro, porque para ele isto tinha uma liturgia que ofendia a sua fé, achava que era um pano de altar. Eu dizia-lhe que não, embora haja alguma conotação possível com isso. Fui à Checoslováquia antes do 25 de Abril, à Bienal de Bratislava, tive lá um prémio e fui recebê-lo. Claro que não fui de comboio diretamente, fui a Paris, dali para a Áustria, não vim de avião, por causa da Pide. Eles têm um ritual muito bonito, oferecem um pão em cima de um pano branco lindíssimo e deitam-lhe sal. É uma coisa muito bonita, de uma teatralidade grande. Este pano tem essa teatralidade, é uma oferenda da coisa mais preciosa dela, o próprio filho.

Como aparecem os bispos?

Não sei porquê, num determinado momento, comecei a fazer bispos e a expô-los na Quadrum, da Dulce d”Agro, uma excelentíssima diretora de galerias, fez um trabalho magnífico. Um dia chegou lá a Helena Vaz da Silva, uma simpatia de senhora, e perguntou-me: “porquê bispos”?, respondi: “Não sei, se calhar porque eu não gosto deles.” Por acaso, uns sim outros não. Há uns bispos de quem eu gosto e outros de quem não gosto. É das tais coisas que o Freud explica. Fiz dois bispos, não são muitos: há o bispo de quem não gosto, com luva, pingalim, monóculo no olho. E o bispo de quem eu gosto tem uma cabeça de criança, um ar repousado, tranquilo, mas tem na mitra um ícone que era usado pela Santa Inquisição, é o pecado dele. Não sei por que é que aparece o pão, este não merecia o pão, se calhar, penso eu.

Quando está a pintar ouve música?

Muito frequentemente, é a minha companhia.

Há compositores que prefere, uns que são bons para pintar?

Bach dá para tudo, é um rapaz para todas as horas, tem de tudo aquele homem. Durante muito tempo era Mahler, aquelas sinfonias muito grandes davam-me uma grande tranquilidade. Mais nas alturas de depressão do que nas alturas de euforia, diga-se de passagem. Um que não consigo ouvir é o Bruckner, não consigo. E é um homem que poderia ajudar nesses momentos, mas não. Por exemplo, os lieder do Schubert que eu oiço muitas vezes não dão para pintar porque não consigo deixar de estar atento à voz e distraio-me. Chopin não levanta problemas.

Quando vê um quadro seu numa parede de um museu reconhece-o?

Fico muito surpreendido e pergunto: mas aquilo é meu? Há uma sensação de surpresa, basta o espaço ser diferente. E depois começo a descobrir-lhe defeitos, começa o sentido crítico. O que é que este homem foi fazer ali?

Os dois quadros que tem em casa por que os escolheu?

É o lá calha, tenho tão poucos quadros.

Vendeu tudo?

Sim, vendi-os todos. Não são tantos como isso, não tenho uma obra muito grande. Uma obra, que coisa tão pomposa. Uma produção… Não tenho tanta coisa como isso.

Conversa com eles?

Acontece às vezes, às vezes zango-me com eles, outras vezes não. Também nem sempre estou a olhar para eles.

O Pedro Cabrita Reis diz que na sua pintura não há uma grande distinção entre o figurativo e o abstrato.

Se calhar tem razão. Eu sei que ele tem essa teoria e até percebo, porque, ao fim e ao cabo, nós só sabemos fazer uma coisa na vida, não temos capacidade para mais. Nós somos um, somos o mesmo, aquilo que sai de nós é só uma coisa. É tão difícil ter uma opinião sobre isso, não sei. Se calhar nem os psicanalistas chegam a essas profundezas. Há uma coisa que eu sei: é que no ateliê, até ao fim da minha vida – se calhar não me falta muito -, tento ser e sou completamente livre. Ali mando eu e só faço aquilo que me apetece, quando me apetece. Se não me apetece não faço. Já basta as obrigações que a gente tem, que tem de fazer. Ali não, aquilo é o meu mundo interior, se me apetece fazer faço como me apetece. Disso tenho a certeza.

Por Ana de Sousa Dias publicado in Diário de Notícias

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