AS peças publicadas na última edição do Expresso de 26 de Agosto, sobre as eleições e a gestão de dinheiros públicos em Angola, refletem bem a tensão ideológica entre a visão promovida pelos que beneficiam da onda de hegemonização do poder financeiro sobre o poder político a nível global, e uma visão cosmopolita da democracia que reclama a separação das águas entre estes universos na esfera pública.

No editorial dessa edição Pedro Guerreiro critica a forma como alguns empresários e políticos portugueses participam, com silêncios e cumplicidades, nos enormes esquemas de corrupção em Angola. “Chamem-me Isabel” é um exemplo de análise jornalística exigente e cristalina, enfatizando a responsabilidade imensa agora assumida por João Lourenço de ser capaz (ou não) de dignificar a política Angolana.

Nas páginas seguintes seguem-se os factos apurados pela rede European Investigative Collaborations a partir de informações obtidas pela revista alemã Der Spiegel sobre o último escândalo de favorecimento de empresas alegadamente ligadas ao grupo de Isabel dos Santos no mega-empreendimento da barragem de Caculo Cabaça, orçamentada em 4,5 mil milhões de dólares. Trata-se segundo a reportagem, de mais um caso de nepotismo na herança deixada por José Eduardo dos Santos, que fica agora na história como o líder político que melhor soube aproveitar sua posição de liderança para consolidar o maior império do continente africano na geração de sua filha.

Estes factos não parecem abalar a opinião de Paulo Portas, que na mesma edição elogia José Eduardo dos Santos por “resistir a tentação do poder vitalício”. No seu artigo não merece nota de rodapé sequer, a chave de ouro que marca o fecho dos seus 38 anos à frente dos destinos de Angola, que Micael Pereira picaramente chama de “último presente de pai para filha”. As notas amáveis de Portas ao regime que continua a dar cartas, desde os bastidores da política Angolana aos mais diversos sectores da economia, não surpreendem. Paulo Portas é um exemplo dessas figuras camaleão, que imediatamente após ocupar cargos de máxima responsabilidade política nacional, integrou o Conselho Consultivo Internacional para a América Latina do grupo Mota-Engil e é consultor da petrolífera estatal mexicana Pemex.

Por muito que o ex-líder do CDS-PP tente “separar os chapéus” na multiplicidade de espaços em que se move, não convém arranhar suas boas relações com a família dos Santos. Não é por acaso que seu discurso apela à “concentração apenas e só na defesa do interesse nacional”, enquanto princípio basilar da sua visão de política pública. E revela também como os jogos de concentração de poder e acumulação de capital estão ligados a uma complexa teia de interesses privados, representados nas portas giratórias da tecnocracia dos Estados nacionais.

Num plano mais amplo em defesa de um novo paradigma geopolítico, Bruno Latour diz inequivocamente que estamos em guerra*. E talvez nunca tenha sido tão importante caracterizar cada um dos lados desta guerra, que é sobretudo um conflito de mentalidades entre uma ideia falsa de progresso humano atavicamente agarrada a noções de “interesse nacional”, e o resgate e florescimento de valores que Pedro Guerreiro sublinha: “não são europeus nem africanos, são democráticos e humanistas”.

Nesta guerra não declarada entre os protagonistas da realpolitik e a urgência de uma nova ética cada vez mais necessária (seja no modo de estar na política, nos negócios ou na formação de opinião pública) a dominância do status quo sustenta-se ainda na relativização destes valores, não tanto pelo que argumentam numa retórica politicamente correta, mas pelo que decidem simplesmente ignorar.

Texto de José Barbedo e ilustração de Dacosta 

*Latour, Bruno 2002. War of the Worlds: What about Peace? Prickly Paradigm Press Chicago.

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