DISSE-VOS que já não vivia ninguém na Viela dos Gatos (excepto a Elmirinha dos Gatos), mas enganei-me. Ainda há muitas pessoas a morarem na viela. Uma delas é a Quitéria que é amiga de infância da minha mãe e que, de vez em quando, vem cá a casa. Gostam muito de conversar uma com a outra e quando a minha mãe não está a fazer queixa do meu pai, trocam anedotas e riem-se muito. Uma vez ouvi a minha mãe a dizer à Quitéria para parar porque ela já tinha feito “chichi na cuecas, já me mijei toda”.

Foi a Quitéria que me ensinou a dizer palavrões. “Mamã “ e “papá” vinham sempre seguidos de coisas não muito bonitas de se dizerem. Eu parecia um papagaio, a minha mãe chamava-me logo à atenção para não repetir aquilo que a Quitéria me pedia para dizer. A Quitéria divertia-se bastante com isso. Ela dizia-o meio a sério, meio a brincar, a minha mãe não ficava zangada de verdade, só que eu ficava confuso e acabava por repetir palavrões com mais vontade ainda. A minha mãe não a chamava de “Quitéria”, trata-a por Tera, as outras pessoas do Monte chamam-na de Terinha. Acho que não deveria ter ainda sete anos quando a vi pela primeira vez. Lembro-me que fiquei muito espantado. Na altura, pensei que ela trazia um bebé escondido nas costas sob um casaco de malha. Nesse dia, perguntei à minha mãe porque é que a Terinha estava a esconder um bebé nas costas. Normalmente, as outras mulheres traziam os bebés na barriga. A minha mãe lá me explicou que ela não estava a esconder nada, a Terinha tinha uma marreca por causa de um acidente que teve em pequena. Fiquei muito impressionado e tive pena da Terinha. A partir desse dia, oferecia-lhe sempre um copo de vinho sempre que ela vinha cá a casa.

Eu queria crescer à força toda, mas quando a Terinha nos visitava ou quando a minha mãe me pedia para ir a casa dela entregar uma peça de costura, eu fazia-me mais pequeno do que era, agachava-me. Não gostava de mostrar a minha altura normal perto da Terinha, sentia-me mal. Não aguentava por muito tempo, as minhas pernas começavam logo a tremer e a doer e eu tinha de ir para outro lado. Quando me cruzava com ela na rua, era pior, tentava manter as pernas dobradas, como se fossem aspas, tinha receio que ela se virasse de repente e descobrisse a minha altura verdadeira. Mais tarde, apercebi-me de que ela achava piada àquilo e continuei a andar agachado na presença dela só para a agradar. Até que, de um dia para o outro, ela deixou de achar piada e lançava-me uns olhares muito sérios, muito frios quando me via, parecia que estava à procura de algo dentro dos meus olhos; fiquei muito perturbado com este novo olhar da Terinha, não consegui encará-la e deixei de fazer a pantominice do costume. Afinal de contas era quase um homem (ou um pito-galo como me chamava a minha avó). Assumi a minha altura sem medos, ganhei ali três, quatro anos, fiquei dois palmos mais alto do que ela. Mas a Terinha continuava a olhar muito séria para mim, sem abrir a boca.

Numa tarde, estávamos apenas os dois na cozinha de minha casa, a minha mãe tinha ido ao quarto buscar não sei o quê, e fiquei sem saber o que fazer. Fiz de conta de que não queria saber o que ela poderia pensar de mim, ignorei-a, encenei uma pose arrogante, como se fosse um pavão, saí devagar da beira dela e fui para o quarto. Ouvi a minha mãe a chamar a amiga do quarto dos meus pais e ela foi ter com a minha mãe. Saí do meu quarto em bicos de pés e espreitei pela frincha da porta do quarto dos meus pais e então vi a Terinha a tirar a camisa para vestir outra, a minha mãe segurava alfinetes na boca, ia provar-lhe uma camisa, mas não vi nenhuma marreca. O que eu vi foi uma segunda cabeça na parte de cima das costas que se elevava mais abaixo da nuca da primeira, mas esta cabeça não tinha nem nariz, nem boca, nem orelhas, era completamente careca como uma bola de bilhar.

E agora, preparem-se, já sei que não vão acreditar em mim, mas não quero saber, vou dizer-vos o que é que aquela segunda cabeça tinha: um par de olhos, dois terríveis olhos negros que se abriram e me olharam de volta. A minha mãe não deu conta, a Terinha tentava estar sempre de frente para a minha mãe para que ela não visse aquela terrível cabeça. Fiquei aterrorizado, encolhi-me todo, encostei a porta, fugi em bicos de pés pelo corredor e fechei-me no quarto.

Não consegui dormir bem nessa noite, a minha cabeça estava em pantanas por causa daquele par de olhos extra da Terinha, aqueles que mais ninguém sabia que existiam, aqueles terríveis olhos, duas ranhuras negras que saíam das costas daquele corpo franzino e que me viram a espreitar para dentro do quarto. Vira para um lado, vira para o outro, não conseguia adormecer, porque é que eu fui fazer aquilo, a Terinha nunca me fez mal nenhum, antes pelo contrário (e nem eu a ela!). Porque é que ela me pregou aos azulejos da cozinha com aquele olhar sério e triste e depois fulminou-me com os olhos escondidos. Não havia maneira daquilo me sair da cabeça naquela noite. Foi a primeira vez que fingi sentir algo que na verdade não sentia, foi a primeira vez que fiz pose para alguém, que me armei em “cagão” como se costuma chamar aqui no Monte às pessoas que têm a mania.

As coisas nunca mais foram as mesmas entre mim e a Terinha. Ela evita-me e eu evito-a também; quando sei que ela vem aqui a casa, pisgo-me logo para as Azenhas para ir jogar bola com a malta. Nunca contei à minha mãe nem a ninguém aquilo que vi pela fechadura do quarto naquela tarde de domingo. Estou a fazê-lo pela primeira vez.

Pedro Amaral, natural do Porto, nasceu em 1974. É tradutor freelancer. É autor do blogue Pedro e o Lobo. Iniciou a sua colaboração com o Correio do Porto em 2016.

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