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Rua da Estrada romana

Rua da Estrada romana

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UM soldado romano e uma estrada é uma daquelas parelhas que não causa qualquer surpresa. É como um semáforo ou uma placa de sinalização de trânsito ou um polícia sinaleiro se fosse cruzamento e se os tempos e circunstâncias fossem diferentes. Não teria havido império se não houvesse uma rede de estradas que chegasse a todas as terras dos bárbaros, sistema de circulação por onde se drenavam riquezas e impostos para Roma, por onde se movimentavam as legiões, a lei e o latim – uma barbaridade de dispositivos técnicos, legais, linguísticos, bélicos, logísticos, simbólicos… para manter um poder assente no domínio de um território-contentor de escravos, metais, trigo, gado e o mais que houvesse.

Hoje (aparentemente) não há impérios, pelo menos daqueles que se baseiam no domínio de um território quanto mais vasto melhor até a vastidão e a instabilidade das fronteiras e das disputas se sobrepuserem à dimensão e à eficácia dos tais dispositivos imperiais tendencialmente mais obesos e trituradores de recursos. Dominar, hoje, significa controlar redes por onde espalhar influências, gostos, simpatias, consumos, imaginários favoráveis aos interesses da entidade que pretende dominar. Não é nada claro que essas redes tenham que ter inscrições geográficas claramente territorializadas, com fronteiras e administrações definidas, centros e periferias.

Um cérebro rarefeito de um canal de TV disse, a propósito dos incêndios em Monção, que esta região era no interior profundo a mais de quinhentos quilómetros de Lisboa, imaginem. Pobre cabeça desmiolada que ainda raciocina como se Portugal fosse um sistema de círculos sucessivamente afastados para o tal interior (não seria exterior?) e centrados na capital. Uma espécie de império onde a distância física seria significado de periferia retardada, província longínqua nos limes do império onde só haveria o grunhir dos bárbaros por entre pálidos reflexos das luminárias longínquas de uma Roma eterna a piscar, a piscar. Aliás, ainda em registo imperial latino, o étimo de região é regere que significa governar, dirigir. A região seria por isso o território governado. Província, outra expressão corrente para denominar qualquer geografia a uns quilómetros do Terreiro do Paço como quem diz vou ao Norte sabe-se lá se é Mafra ou Chaves, significava também território conquistado fora da península itálica. Caímos sempre no mesmo: a doença olisiponense vem toda do trauma da perda do império que agora insiste representar em forma de rectângulo reduzido voltado para o Atlântico. Sem o outro-periférico-dependente, a capital perde a razão. Delirante.

Adiante.

No veículo que passa pelo impassível romano, rezam uns escritos que qualificam a empresa que comanda o grosso maquinismo de muitos rodados como european logistic operator como se diz na língua franca de hoje.

Está aí a alma da estrada. Uma complexa prótese que torna possível o movimento e a relação; um dispositivo de enfraquecimento do atrito provocado pela rugosidade da distância. Um ar de liberdade assim haja condições para o respirar. Dito isto, não seria mau reduzir a brita a sentinela legionária, ou cobri-la de sarna, que sei, para que se mexa, para que se ponha a mexer esta presença que pretende controlar quem passa.

SOBRE O AUTOR:
Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde também é investigador no CEAU-Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo. É autor de A Rua da Estrada. Colabora com o Correio do Porto desde janeiro de 2015.

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