AQUELA mulher moira que te enfeitiçou uma vez, ainda tem de ti uma lembrança que causa sofrimento. Não pretendo fazer-te lembrar coisas que decerto te magoam, momentos em que como um simples mortal te deixaste prender por um amor que mais ninguém conheceu. Deves ter sofrido a mágoa da sua perda e continuas a suportar no teu corpo o peso da tragédia de que foste o principal causador. Dizem que foi por ciúmes, que impossibilitado de te transformares num príncipe e assim conquistar o coração dessa senhora belíssima, enfurecido provocaste-lhe a morte. Agora ela é tua, só e toda tua, nunca devolveste o seu corpo amado ao mundo onde um homem que a adorou espera ainda pelo seu sorriso. É nas profundezas do teu leito que guardas o seu cadáver sem vida mas tenho a certeza de que não te sentes feliz por isso. O amor, meu amigo, só pode ser vivido em perfeita sintonia entre dois seres. É como a brisa que corre sobre ti, quem a conseguir agarrar sentir-lhe-á a frescura e o encantamento. Quem julgar que nunca mais acaba, fica refém desse momento mas sobra-lhe a certeza de que outras brisas se formarão sobre as tuas águas. O amor tem de ser livre e florescer livre nos corações de quem ele escolher por morada. Não se pode obrigar ninguém a gostar de nós e, se por algum motivo se abafar a liberdade de um ser, se o condicionarmos aos nossos desejos egoístas, provocamos a morte desse sentimento. Foi o que aconteceu contigo, decidiste sem pensar, arruinaste o mais belo projecto que alguma vez existiu sobre a terra, procedeste como o mais ciumento dos humanos, mataste o amor. Agora sofres, ficas a moer a culpa vergado ao peso da tua consciência ferida por toda a eternidade. Nas noites em que o Leopoldo chama por ela, parte-se-te o coração e então, deixas de ser um rio para te transformares num ser comovido vergado ao peso dos teus pecados.
Era uma princesa, bailava como uma deusa agitando o corpo de serpente em movimentos ritmados por uma música que fazia lembrar o vento a agitar as areias das dunas de um deserto longínquo, algures na Babilónia. Cobria ligeiramente a elegante e esbelta silhueta com um Sarki azul céu de delicada seda enfeitado com contas e lantejoulas em ondas pretas, ouro e vidrilhos de desenhos intrincados com pérolas. Acima da fina cintura, realçando o biquini, elevando o busto, um cinto shakira de tons amarelo-torrado com brilhantes, enfeitavam a harmónica moira que na cabeça tinha, sobre a negrura de suaves cabelos, um colar de brilhantes pedras a descer em cascata pela testa pequena, produzindo um efeito de inigualável formosura àquela mulher oriental.
A saia que se desprendia da cintura livre, deixava visível um ventre perfeito e em voos sinuosos e ondulantes, ia evoluindo no ar ao sabor dos graciosos e sensuais movimentos das ancas e quadris, era transparente, pouco mais que um ténue véu da cor de pálidas rosas, com desenhos nos bordados de linha dourada a completar o traje da bailarina da dança do ventre, que punha nos braços e nos tornozelos, enfeites de arcos de metal colorido de circulo descontinuado, encrostados de pedras cintilantes e lindas.
Tinha chegado a Pombal arrastada pela família que emigrara de um país distante. Vieram trabalhar nas vindimas no Douro mas quando findaram as tarefas agrícolas e a pobreza se instalou novamente na região, deixaram-se vir ao sabor das tuas correntes rumo ao litoral onde a luz da esperança brilhava com mais intensidade.
Nunca chegaram a ver a imensidão do mar, numa paragem do barco que os transportava, decidiram ficar a trabalhar numa quinta que os acolheu à tua beira. Foi ali que conheceu o homem que a fascinou e com quem pela primeira vez se entregou ao amor.
As difusas luzes coloridas da média sala onde acontecia a dança, produzia efeitos fantásticos naquela divindade e a suavidade da música de compasso sensual, lânguido e erótico, geravam um clima de magia e sublime misticismo num encantamento tão intenso que Leopoldo se imaginava como a viver em sonhos, as cenas dos contos mirabolantes das mil e uma noites.
Essa que foi a noite de todas as noites, aquela em que os seus olhos de juventude encararam pela primeira vez com a visão celeste de Zahra, ainda tem dele a viva e intacta recordação desse momento fabuloso e ímpar apesar do tanto tempo que já passou desde esse dia, apesar da vida o ter transformado neste solitário cangalho velho sem préstimo mas sepulcro de afectos e recordações inenarráveis. Não por que escandalizem, magoem ou causem repulsa, mas tão somente por que são só suas e constituem o tesouro sacro e incalculável da sua juventude. Coisas lindas que às vezes o fazem sorrirem misturadas com algumas amarguras que os homens como ele guardam no coração até à eternidade.
O barco, o velho barco a remos em que ele e ela navegavam pelo teu corpo de sonho nos fins de tarde em que o horizonte crepuscular enrubescia e as tuas águas tingidas de reflexos de oiro e prata, eram suaves e os dois trocavam afectos, beijos e juras de amor, baptizou-o ele já perdido no enredo dessa paixão cigana, com o nome daquela moira belíssima:
— Zahra!
As letras que carinhosamente desenhou com tintas cor de fogo nos lados da proa da insigne embarcação apregoavam e espalhavam por todo um rio como folhas caídas ao sabor do vento, o nome da senhora herdeira do seu coração. Amor assim nunca se viu aqui. Raças tão distintas comungavam a mesma hóstia que a paixão fabrica sem atender a credos, a usos e costumes que quase sempre separam o que a natureza quer unir.
Tu que o viste nascer e crescer, que lhe afeiçoaste a meninice e juventude, testemunha silenciosa das suas angústias e contentamentos, o maior apego de uma vida, havias de num gesto de gigante enraivecido, desfazer o idílico momento que foi de suprema elevação e colocar uma cruz de cemitério naquelas duas vidas onde uma afeição sem limites já tinha feito morada.
Nessa noite de cheia descomunal naufragou o barco Valboeiro no turbilhão das águas revoltas e levou com ele para as profundezas do sítio a deslumbrante senhora que nunca mais voltou à superfície.
Hoje, depois de já terem passado cinquenta anos desde esse trágico acontecimento, o velho Leopoldo olha para ti com uns olhos sem brilho, cansados e cegos, incapazes de distinguir claramente o horizonte mas imaginando ainda a dança de Zahra como se ela evoluísse delicada por sobre a superfície das tuas ondas e o olhasse com aqueles olhos rasgados de um verde que se confundia com a tua cor e lhe viesse dar agora um sorriso de amante cumplicidade, um beijo um carinho como tantas vezes lhe tinha dado.
Aqui entre Pombal de Medas e Porto Carvoeiro sítio onde tu és mais deserto e agreste, onde as sombras da noite mais se acentuam e um silêncio de morte paira sobre as coisas, um velho barqueiro louco indaga o horizonte líquido aflito julgando que a morte um dia lhe devolverá a sua amada. Espera, espera ainda como esperou sempre pelo seu amor que as tuas águas têm no seu seio e que nunca mais há-de chegar e tu arrependido choras de pena e remorso quando todas as noites ele grita desesperado o nome dela:
— Zahraaaa! Zahraaaa!
O eco do grito perde-se abafado no profundo vale onde dormes e, aqueles olhos ceguinhos do barqueiro derramam lágrimas que são de sangue pela mulher que um dia tanto amou.
SOBRE O AUTOR:
Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro; Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras – Conversas com um Rio; Fado Falado – Crónicas do Facebook e Amanhecer (Poesia). Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.
… e no fundo desse corpo de líquido aconchego, repousa agora, inerte, um amor que não é teu!
Trágico e perturbador. Há águas mansas que, sem o quererem, se tranformam, quais humanos, em cruéis carrascos.
«Agora ela é tua, só e toda tua, nunca devolveste o seu corpo amado ao mundo onde um homem que a adorou espera ainda pelo seu sorriso. É nas profundezas do teu leito que guardas o seu cadáver sem vida mas tenho a certeza de que não te sentes feliz por isso.»
O meu abraço ao Poeta!