É a família reunida junto à Árvore de Natal na segurança do lar, protegida de inundações e outros cataclismos de que o espaço doméstico está livre por definição. Pai, mãe e filhos, por esta ordem, seguem as regras da representação canónica. De pé, o pai veste fato e gravata e envolve a família com os braços, a mão direita sobre o ombro da esposa e a esquerda aconchegando a filha mais velha – é o chefe da família. Sentada, a mãe veste saia e casaco, sapato raso, cabelo apanhado e expressão tranquila. A filha, de livros na mão, parece querer abraçar o irmão pequeno tentando sair da formatura. O benjamim está sentado ao colo da mãe, descalço, segurando uma bola quem sabe talvez o mundo. É muito bronze.
Dois filhos é aquilo que a estatística demográfica aconselha para manter o vigor da população sem grandes sobressaltos e risco de falência da Segurança Social. Como já não estamos na pré-modernidade, riscaram-se avós e tios, esses que morem nas suas casas, a sogra dá-se muito mal com a mulher e o sogro acha que o genro é moina e tem a mania de andar bem-vestido para se armar. Em público faz-se de sonso, muita mãozinha no ombro da mulher, carinhos para a filha; em casa volta e meia grita e ameaça chapada. Famílias sem filhos, casais LGBTs, mães solteiras e pais incógnitos não constavam do programa. Zygmunt Bauman, o filósofo que mete tudo no liquidificador – a modernidade, o amor, a vida, o medo, os tempos, a arte, o mundo -, pegaria nesta família de bronze e dissolvi-a na lagoa verde para que depois se pudesse ver melhor o que é a família imaginada de hoje, fluida, reunida, desfeita, refeita, ajuntada nos seus rituais, no facebook, intermitente, a soprar velas nas festas de aniversário, a distribuir presentes em instantes natalícios. O que faz uma família?, pergunta a Rosalina Costa.[1]
Aqui faz pouco. Está imóvel no pedestal.
A paz reina nesta quadra e as pombas vêm matar a sede a esta poça de água cheia de cloro, não tanto que não se tenha posto esverdeada por tinturarias de limos e bactérias.
Caem as sombras do fim da tarde de mais um dia. Não tarda e a Árvore de Natal estará iluminada com a estrela a faiscar. Tocam as buzinas na estrada e passam camiões, talvez o Pai Natal no seu trenó puxado pelos Três Reis Magos que contornarão a rotunda sem verem a estrela.
[1] Rosalina P. Costa (2016), Família e Famílias no Portugal contemporâneo. Discursos, trama e textura em perspectiva sociológica, Ano XXIX (2016) N.º 50 Eborensia, pp. 95-136, Évora: Universidade de Évora.
SOBRE O AUTOR: Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde também é investigador no CEAU-Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo. É autor de A Rua da Estrada, Vida no Campo e Volta a Portugal. Colabora com o Correio do Porto desde janeiro de 2015.
Texto publicado originalmente em 23 de dezembro de 2017