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Rua da Estrada da ficção real

Rua da Estrada da ficção real

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OS modelos têm muitas vezes um conteúdo ficcional. Essas ficções servem, entre outras coisas, para tornar verosímeis e possíveis essas representações do real, construindo semelhanças, relações, narrativas acerca do modo como podem ser pensados tais modelos e soluções, de como podem ser levados à prática, de como podem ser argumentados ou tornados coerentes.

Para um pensamento demasiado compartimentado em classificações e formas de espacialidade, este modelo de casa com boné sobre a grande varanda começaria a dar problemas logo ao nível do chão: não contando com a rampa de acesso à garagem por onde se vai sumir aquele automóvel, a entrada para o jardim repete-se em duas versões, uma à face da estrada e outra perpendicular, as mesmas colunas, o mesmo portão, o mesmo par de bolas. A redundância é sempre aconselhável nos sistemas complexos – as falhas, a alternância de baixas e altas intensidades de funcionamento ou as combinações imprevistas funcionam melhor. Modos de pensar excessivamente conservadores e avessos à especulação, ao inesperado e ao paradoxo, não servem para os apuros do presente.

Vivemos em constante sobressalto acerca do que nos pode acontecer ou, simplesmente, acerca do que acontece e isso é incompatível com a rigidez das narrativas que tivermos disponíveis para nos apercebermos das ocorrências e do sentido que elas possam ter. É necessário maior detalhe, maior grau de complexidade, mais hipóteses de explicação, menores restrições sobre o que seja a racionalidade ou o jogo das causas, dos efeitos e das contingências. Nunca saberemos qual é a ordem natural das coisas se não soubermos quais são as desordens onde essas coisas podem estar agora, nunca ou amanhã. O pensamento único é letal.[1]

Claro que faz todo o sentido colocar um grande painel fotovoltaico (mais dois térmicos de menor dimensão) a proteger uma varanda soalheira do sol intenso e da chuva. Voltado a sul, esse dispositivo está onde devia estar para a alquimia da transformação da radiação solar em energia eléctrica. Chegará o dia em que tudo que é tinta, vidro, telha, gradeamento de ferro, betão, o que quer que seja que sirva para construir uma casa, servirá também sabe-se lá para quê como no tempo em que os animais falavam e todos se desentendiam porque ainda não havia as fábulas e filmes de desenhos animados para lhes por o discurso e as ideias em ordem.

[1] Sobre modelos, ciência, ficções e narrativas, ver Adrian Mitchell Currie (2014), Narratives, mechanisms and progress in historical science, Synthese 191 (6), pp.1163–1183

SOBRE O AUTOR:
Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde também é investigador no CEAU-Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo. É autor de A Rua da Estrada. Colabora com o Correio do Porto desde janeiro de 2015.

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