DIZ que na Avenida da Boavista, ali justo antes da Via de Cintura passar por baixo dela, se vai transformar um prédio de escritórios num prédio de escritórios por dentro e, por fora, num dispositivo 3D daquilo a que chamam arte pública ou arte urbana. É uma epidemia que anda aí. Entretém muito, tem coisas vistosas e alimenta a voracidade das imagens e da circulação de imagens. Quem circular na Via de Cintura vai ter vislumbres para esse dispositivo cénico e vai pensar, que lindo, parece que estamos no estrangeiro, como eu gostava de trabalhar ali e sentir aquilo tudo por dentro com ar condicionado e pisos falsos.
A arte, coisa extremamente incerta e pau para todo o ofício, vai cumprir o seu papel distinguindo um produto imobiliário com a sua marca, acrescentando-lhe o preço de transacção no mercado, entidade que em matéria de tendências e linguagens vive mal com a arte povera. Não é que o edifício não fosse já distinto. Era.
Era obra de escorreito modernismo tardio do arquitecto Ricca que teria hoje cem anos e olharia para aquilo morrendo outra vez. Quando lhe encomendaram aquele edifício e todos os outros que fazem parte do conjunto que já teve nome de Foco e Graham, começava no Porto a grande escala do projecto urbano privado, edificado em solo industrial obsoleto e promovido pela finança cá do burgo para gente bem assertoada de rendimentos. Era um atrevimento. Ainda o centro do velho do Porto não tinha dado o estouro que precedeu esta novela delirante que hoje vive, e apostava-se numa cartografia com um novo centro para o Porto-Metrópole em formação, exactamente onde a Boavista desliza sobre o eixo que ligaria a auto-estrada ao aeroporto e ao porto marítimo numa zona já distintamente marcada pelo seu verniz social. Ricca esmerou-se, desenhando uma mistura elegante e variada, da torre à capela, do cinema à piscina, os jardins, as galerias comerciais, o cinema, o hotel, os escritórios, tudo correcto, diferente da cidade pequenita, granito, nevoeiro, ruas empenadas. Vinde à modernidade sem aquele ar asséptico e desencantado dos volumes ressequidos sob a luz, solitários, indiferentes.
Vivia-se bem mas tudo se vai gastando. O cinema fechou, o hotel está uma lástima, faltam coisas que se inventaram entretanto, tornou-se muito rarefeito o uso dos apartamentos e a máquina centrifugadora começou a aspergir matéria para fora dali.
Vieram então as novidades para dar no olho. O moderno não se presta a coisas assim vistosas. Um moderno das origens dizia até que o ornamento era crime e que as arquitecturas se queriam depuradas, funcionais, falhas de adereços, brilhos e feitios. O homem não era muito escorreito, oscilava entre amores frustrados por raparigas atrevidas a quem prometia mansões às riscas, projectos de casas para ricos e escritos moralistas insuportáveis sobre roupa interior e maneiras de cozinhar massa, entre outras pérolas. Em matéria de conhecimento antropológico, o homem era um zero absoluto. O homem nem sequer entendia porque é que os humanos pintam o corpo. A sua ditadura do gosto parecia-lhe suficiente. São assim os iluminados, destemidos.
O certo é que o modernismo ficou refém do desencantamento e por isso tão fragilizado nos tempos de hoje que tanto apreciam a mistura, o falso e o verdadeiro, o falsadeiro e o verdalso, o dourado transparente, as pregas iridescentes, o rigor minimal para desenfastiar, o assumidamente pop, a novidade, e tudo e tudo menos as coisas só para iniciados que justamente ficarão para esses exibirem a sua diferença e o tão virtuoso requinte que os conforta. O problema é que esses são poucos porque a quantidade escassa é condição necessária para a sua existência. O risco de banalidade causa-lhes pavores e vómitos mortais.
A ironia é que a capa de massa que envolverá o edifício e que depois será artisticamente picada pelo Vhils, homem de notoriedade assegurada conhecido por picar capas de matéria sobreposta depositadas pelas vicissitudes do tempo e não pela urgência do faz de conta, tanto dá para as manobras do imobiliário em busca de cifrões aumentados, como para a alegria e as selfies do olhar distraído, como para o compreensível azedume dos guardiões da cultura arquitectónica, para desanimar os que gostam verdadeiramente da arquitectura, sobretudo para lembrar o respeito devido aos projectistas como Ricca. Que se guardem arquitecturas distintas como Serralves, o Burgo ou a Casa da Música que não estão livres de umas capinhas como as que se compram para os telemóveis, a Torre dos Clérigos que pode ser perfeitamente folheada a ouro (falso), titânio, folha de flandres ou cobertura crocante, swarovski no interior da Sé e o mais que só de lembrar, acontece.
No final, final, falar-se-á do arquitecto Agostinho Ricca, da igreja de Nossa Senhora da Boavista com os vitrais do mestre Júlio Resende finalmente restaurados e redesenhados com emojis. Que digo, que se me tolda o discernimento, crepita o teclado, cobre-se o ecrã de moscas… Que lindo!
SOBRE O AUTOR:
Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde também é investigador no CEAU-Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo. É autor de A Rua da Estrada, Vida No Campo e Volta a Portugal.