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Carta aos meus filhos por Antero de Alda

Carta aos meus filhos por Antero de Alda

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rapazes se vocês fossem crianças dos bairros da Bidonville ou da Síria eu só vos daria beijos beijos beijos…
deixem-me fazer-vos uma pergunta: quando eu morrer vocês metem o meu corpo e a minha alma no mesmo caixote?

meus filhos desculpem eu sou um pai implacável
mas eu sou vosso pai todos os dias.

não admito que me levantem a voz
que me indiquem o caminho — é já tão tarde!

não admito que interrompam o meu silêncio
quando estou a ouvir o cântico das almas.

não admito que me devolvam os meus nãos
que me recomendem um psiquiatra.

não admito que me digam se devo ler
o medo de AL BERTO ou a cartilha de
Madre Teresa de Calcutá.

meus filhos eu falo com o gato
vocês já alguma vez falaram com o gato?
vocês dizem que eu não vos compreendo
o que sabem vocês de compreensão?
vocês dizem que eu não vos amo
o que sabem vocês do amor?

meus filhos eu estou ainda em construção
mas nessa escultura divina que todos somos
Deus dedicou-vos ainda muito menos
tempo!

meus filhos vocês não pagam os meus impostos
não respondem às cartas que me chegam do Inferno. pois eu digo-vos:
o vosso pai já perdeu demasiado tempo
com os homens já sabe que não é imortal.

meus filhos meus três filhos varões
meus deuses apolíneos
eu agora sou o Van Gogh da orelha cortada…
pintei mulheres, penteei mulheres
acariciei cães adormecidos.
já vi uma arma apontada para mim. se virem
um dia uma arma apontada para o céu fujam!
vocês são tão fantásticos que não merecem morrer
sob uma bala perdida.

eu empurrei-vos para o limoeiro dos vizinhos
que trabalheira!
empurrei-vos para o limoeiro dos vizinhos
sonhando sempre com uma laranjeira.
sois maiores trouxe-vos às portas do Céu
(aqui na porta ao lado de onde
me entrego ao juízo de Jezebel)
e agora?

ensinei-vos a ter medo medo de todos os medos
medo dos pesadelos com fantasmas e precipícios
medo da casa que geme de noite.

meus três filhos dionisíacos
eu ensinei-vos a beber! que mais querem vocês?
eu vou chorar tanto tanto por não vos poder ver
não vos poder sentir não vos poder falar
não poder beber do vosso cálice.

meus filhos quando eu morrer podereis ver-me
na orla de Cassiopeia. algures entre Andrómeda
e o monte de Vénus.
uma luz ínfima que não vos verá
que não vos ouvirá que não vos repreenderá.
uma luz que trespassará o olhar dos vossos filhos
dos filhos dos vossos filhos
dos filhos dos filhos dos vossos filhos.
uma luz que não turvará sob as vossas lágrimas.

meus filhos se eu morresse agora
quem iria ajudar a mãe a abrir as garrafas de
vinho com o saca-rolhas?

meus filhos vocês só compreendem a vossa mãe…
quem vos repreenderá?
vocês só compreenderão as vossas mulheres
as mulheres que houverem nas vossas mulheres
as mulheres que houverem nos vossos homens
os homens que houverem…
eu nunca vos repreenderei.

meus filhos vocês só me perdoarão
quando forem pais.

meus filhos eu já vos disse isto:
pintem as paredes da casa não deixem nunca
a mãe envelhecer.

meus filhos porquê esconder o coração porquê?

meus filhos procurem nos sorrisos
nos sorrisos nos sorrisos ao redor dos sorrisos…
eu estarei lá!

Por Antero de Alda, fevereiro 2018, publicado in Câmara Antiga

NOTA DO AUTOR:
Paulo, obrigado pelo teu interesse constante que me motiva e também me organiza. Hoje, deixa-me dizer-te: a carta aos meus filhos é duma falta de generosidade tão avassaladora quanto involuntária, porque na verdade eu queria pedir-lhes perdão. Perdão por não ter conseguido, no meu tempo, proporcionar-lhes um futuro melhor, pelo qual sempre lutei de espírito livre. Perdão, portanto, porque não consegui impedir que uma falsa plêiade de governantes, homens maus e corruptos e sem talento, pudesse impor-lhes salários miseráveis, qualidade de vida em total desacordo com as suas expectativas. Eu definiria este tempo como Fareed Rafiq Zakaria, autor do livro O mundo pós-americano (2008): «É como uma super-nova. Uma super-nova é uma estrela que, para o resto da galáxia, parece o objecto mais espantoso e reluzente do mundo, mas no seu âmago não existe nada, é um buraco negro…»

Obrigado.

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