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Abílio: memória perturbada

Abílio: memória perturbada

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COMO é que eu conheci o Abílio? Foi o Marco que nos apresentou, aí em 1965 ou 1966, os meus primeiros tempos no Porto. Na Galeria Alvarez, na Rua da Alegria, o Abílio trabalhava em gravura, orientava uns quanto artistas jovens,  e conseguiu interessar-me pela arte da monotipia, com que eu concorri a alguns certames até ter o bom senso de não me meter a artista!

Sempre presente a gravadora Maria Augusta de Sousa, terna companheira a vida inteira do Abílio. Ela era mesmo muito boa nas monotipias. Pouco depois o Abílio começou a avançar nas experiências criando objectos, culminando com o fantástico guarda-nada. Este era uma escultura metálica do esqueleto de um guarda-chuva assente sobre um plinto de pedra. Fez então uma exposição das suas obras de reaproveitamento de tanta coisa, algo insólito que colidia mesmo com o menos académico que os artistas portuenses então faziam. E eu lá estava na inauguração. Lembro-me bem que havia uns curiosos que tudo admiravam sem se questionarem. Porém, um desconhecido aproximou-se de mim, deu-me uma simpática cotovelada e puxou-me para um canto, próximo da porta. Que me diz a isto? Notável, hem? Olhei o que me apontava e certifiquei-me que não estava numerado em catálogo pelo que me senti à vontade para lhe dizer tratar-se de… um vulgar extintor, obrigatório nos lugares públicos!

Porém, a minha relação com o Abílio evoluiu a ponto dele me ter dado notícias dos seus inícios, seja o catalogo da sua primeira exposição na Galeria da Sereia, então já extinta na Rua da Constituição e o seu livro de poemas, O Voo do Morcego. Recebi dezenas – talvez centenas – das suas peças literárias experimentais sob a forma de composições em fotocópias – que eram, no todo, o mais singular cavalete da História da Pintura! –, que ele fazia quase sempre na Maia, a dois passos de casa. Também concorria a exposições e quando o júri era constituído por membros da AICA, ele era sistematicamente recusado. E isso irritava-o e produzia panfletos em que eles eram sovados e acusados de estarem ao serviço de interesses escusos. E então era como a pescadinha de rabo na boca. Nunca o Abílio entrou numa exposição deles.

A obra de Abílio enveredou pelo universo da intervenção política. Pacifista, desancava políticos de todo o mundo, acutilando o capitalismo, pai de todas as guerras. Então surgiu o movimento da mail-art. Aquilo eram umas operações artísticas de intervenção internacionais em que participava o Abílio, ao lado – lado postal entenda-se – tal como milhares de artistas das sete partidas do mundo. O correio levava às trocas de materiais artísticos, as mais das vezes perecíveis. Ele deve ter realizado uma colecção enorme, pois participou em centenas de circuitos temáticos de mail-art.  E por essa altura, nesta mesma Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, para onde o trouxe, organizou uma exposição pessoana de Arte Postal, com a colaboração de artistas do mundo inteiro. E, depois, já com o patrocínio do Pelouro da Limpeza do Município do Porto, mais uns bons centos de artista da Arte Postal pronunciaram de uma nova forma o nome do Porto. Tal como ocorrera com Pessoa.

Em dois anos, lançámos um jornal comemorativo do 25 de Abril, intitulava-se Sempre, cuja coordenação nos coube aos dois no primeiro e apenas ao Abílio no segundo. Ele era autor, coordenador dos textos de escritores portugueses e galegos e orientador gráfico da publicação… que foi feita em tipografia.

Na altura em que iniciávamos a nossa amizade, estava ele a lançar um movimento-revista chamado Tábua, de que saíram os dois números do costume. Curiosamente, além da Maria Augusta colaborava também o então jovem Mário Cláudio. E andou o Abílio pelo universo da produção de poesia experimental e panfletos até que um dia consegui convencê-lo a participar no Festival de Poesia no Condado, em Salvaterra do Minho, na Galiza, logo adiante de Monção. Era um festival espectacular, com um palco e uma povoaçãozinha de tabernas. Para além dos subterrâneos de um castelo medieval, onde havia ene exposições, sobretudo de imagens humorísticas de combate.

Porém, o camarada Abílio só a custo consentiu subir ao palco, teve de ser sob a minha tutela a entusiasma-lo. Mas logo se viu na contingência de erguer a sua frágil voz, via microfone, para um público que se estimulara com a apresentação do poeta. Cada passo da diatribe anti-imperialista era um clamor público, vibrante. A dada altura parou, olhou-me e confessou: Ó Viale, estou à rasca! Mas não estava e o longo poema-panfleto chegou ao fim, amplamente ovacionado pelos nossos amigos galegos.

Suponho que foi a única vez que experimentou tal encontro com as massas ao vivo. Porque na Arte Postal esse encontro era pelo correio. Admiravam-no em todo o mundo, disso podem estar certos.

Mas há uma coisa que há muito me apoquenta. É que não haja sensibilidade na Câmara Municipal da Maia para organizar um Espaço Abílio, onde se deveria guardar e dinamizar todo este enorme espólio que ele deixou.

Como qualquer ser humano, mesmo artista, o Abílio viveu entre dois anos: 1926-1992. Profissionalmente era desenhador e projectista numa empresa de publicidade, amparado não só no curso de Máquinas e Electrotecnia, do Instituto Industrial do Porto, como no seu próprio génio criador. E como eu andasse, aí por 1968, também entusiasmado com a poesia experimental, eis que se faz em Inglaterra uma exposição com poetas de lá e de cá. Em Arlington. E a representação portuguesa, tanto quanto me lembro, era constituída pelo Abílio, o Melo e Castro, a Ana Hatherly, o António Aragão e eu. Consegui guardar uma das minhas peças que então esteve exposta, até que há um par de anos passou a integrar o Museu de Arte Contemporânea da Madeira, no Funchal, onde já se encontravam algumas obras da Ana Hatherly. E cada vez que remexo nos meus papéis, apesar de um par de esbulhos motivados pelo empréstimo para exposições, sempre me aparecem obras do Abílio! Fotocópias, é claro.

Felizmente as melhores antologias nacionais e internacionais de poesia experimental dão bom sinal da obra do Abílio. Por aí se respira fundo, mas falta um cartapácio em que estejam reunidos todas as suas produções, da poesia experimental aos manifestos radicais contra as instituições do seu tempo. Um volume que inclua desde O Voo do Morcego (1962), à Lidança (1968), a Carta a Vinicius (1969), a Carta ao crítico d’arte Rui Mário Gonçalves (1969), ao Despertador (1974), ao Manifesto vermelho (1976), ao Dia de pica boi (1983), mesmo ao O futuro defunto que se parece comigo (1983), Poéticas visuais (1985), Trabalho/liberdade (1987), Manifestos LIXARTE (1987), Corporis Christi (1991), T’arrenego (1991), V(l)er (s.d.), entre tantos e tantos folhetos.

Detesto funerais, mas fui ao funeral do Abílio, onde havia um mar de gente, o que me surpreendeu porque a obra dele não deveria atrair a maioria dos que lá estavam. Proferi uma peça oratória enquanto badalavam os sinos. A minha voz debateu-se com o volume das badaladas fúnebres. Senti-me vacilar. Porém, ao abandonar a Maia passei pela estátua do visconde de Barreiros, que o Abílio, num momento bem humorado, me confessou ser seu parente antigo. Mas isso não o aquecia nem arrefecia. E também sempre me lembro do Abílio quando entro nas livrarias e passo os olhos pelas estantes cheias de algo que ele classificava de lixeratura. E não é que o raio do vocábulo tem cá uma força de razão!

José Viale Moutinho

Porto, 17 de Maio de 2018

Obra em exposição 

Mais informação sobre o autor no Arquivo Digital da PO.EX

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