A NOITE desceu sobre o rio tão repentinamente que surpreendido pela beleza do céu, nem sequer me apercebei. A luz do sol esgueirou-se no cume de uma montanha que delimitava o cenário que tinha pela minha frente e, a claridade crepuscular que ficou, apenas possibilitava vislumbrar as silhuetas do meu pequeno mundo, espaço demarcado que me cercava e um rio lá ao fundo a brincar com as mãos.
Primeiro escondeu-se o fulgor que mostra tudo, desnuda, afeiçoa e fere com brutal realidade e faz esplendecer as vidas das pessoas e as coisas comuns da terra; depois afluíram as sombras que ocultam, atemorizam e resumem a paisagem à condição de matéria sem vida.
A minha janela aberta, a minha cadela a dormitar enroscada aos meus pés, lá fora um sopro quente e abafado de verão a percorrer os caminhos vazios da minha aldeia lado a lado com fantasmas de criaturas já falecidas a procurar restos de uma vida inacabada ou um alguém que lhes jurara amor eterno.
Eram quatro, pararam por baixo da minha janela, acenavam-me com gestos de mãos mas não consegui reconhecer nenhum deles.
– Que estás aí a fazer, anda connosco, vem para um lugar onde tudo é maravilhoso, deixa de te preocupar com os outros, não precisas, isso é tudo uma mentira, vem, tens gente à tua espera, os teus pais, os teus avós, os teus irmãos e todos os outros a quem amavas, estão ansiosos pela tua chegada, disse um deles!
– Fora daqui, desaparecei, estou farto da vossa conversa, todos os dias a mesma retórica, deixem-me sossegado, respondi irritado.
– Vais ter de vir, é uma questão de tempo, o que é que te prende aqui, disse outra vez a mesma voz. Apontei com um dedo as luzes a tremular no horizonte negro e não disse nada.
– As luzes, tu estás preso às luzes mas olha que a ti já nenhuma luz pode valer, acabou o teu tempo, vais ficar no escuro quando tudo se apagar, anda connosco, vem enquanto te podemos ajudar!
Já não se encontra paz em lado nenhum; durante o dia são os vivos a transformar-nos a vida num inferno, durante a noite são os mortos a proibir os sonhos, pensei.
– Fora daqui, repeti agora elevando a voz. Se não se põem a mexer atiço-vos o cão!
Foram-se por entre gargalhadas colectivas enquanto a minha cadela levantava a cabeça lentamente e olhava para mim como quem olha para ninguém, como um cão que sente pena do chefe da matilha que enlouqueceu. Julgo que perdia a minha autoridade sobre ela nessa madrugada, pareci-lhe humano e os cães gostam mais dos seus pares e só nos aceitam como chefes, por que vêm em nós um cão como eles embora maior e mais forte.
Um rumor surdo chegou-me amortecido pela aragem que fazia, um clarão desconforme no horizonte pressagiava a vizinhança da cidade surpreendente onde tudo sucede sem qualquer antecipado aviso ou compaixão e as criaturas coabitam amontoadas em silos gigantescos ignorando-se umas às outras, vegetando na selva supostamente civilizada.
A metrópole mata as estrelas, oculta o céu e despedaça os sonhos. Os clarões intermitentes que rasgam a noite, são apenas labaredas a ferir um firmamento pardo onde jazem as esperanças de muitos. Nos bares e outros clubes de diversão nocturna, desarticulam-se corpos nas pistas de dança, marionetas bizarras dominadas pelo efémero efeito de pastilhas de felicidade misturadas com bebidas exóticas manipuladas por dementes e as lâmpadas multicoloridas, rebolam-se nos tectos entontecidas e, às vezes, as potentes luzes dos holofotes que cegam, desvendam pedaços de rostos de jovens velhos, olhos baços, expressões colectivas característica dos momentos dramáticos antecessores da morte.
O potente som abafa as palavras, os sorrisos e as lágrimas. A cidade não dorme, surpreende!
Lá fora haverá gente a dormitar estendidos nos chãos dos átrios exteriores aos bancos e a outros estabelecimentos comerciais. Desabrigados, pessoas que nós todos expulsamos da fraternidade, seres a quem a cidade acolhe no seu espaço de todos, prostram-se sobre a indiferença, ameaçam morrer antes do sol chegar.
-Tens frio? Tens fome? Ninguém pergunta!
Havia luzes artificiais nas ruas e nas casas espalhadas pelos povoados rurais que se avistavam da minha janela indiscreta de onde tudo se vê, tudo se aceita, compreende e pouco ou nada se sente por ser interdito e politicamente incorrecto exteriorizar emoções.
Primeiro eram centenas delas, depois e à medida que a noite avançava, iam-se apagando, uma aqui, outra ali como se uma mão gigantesca dispusesse da claridade e das sombras conforme a sua vontade ou das suas particulares conveniências. Tudo a recolher ao silêncio absoluto, tudo a desaparecer na escuridão onde os corpos descansavam vigiados de perto pelos sonhos misturados de pesadelos medonhos.
Ficaram apenas duas luzitas a tremular no escuro, sentinelas atentas, luzes que perpetuam os vestígios da presença humana que teme as trevas ou apenas artificial claridade de dois lares, moradias onde o esforço diário ainda não tinha terminado.
Já não dedilhava a minha guitarra, pousei-a a meu lado e deixei que os sons da noite tomassem conta de todo o ambiente que me cercava enquanto o meu pensamento se fixava nas tuas palavras tardias, ecos que se repercutiam no meu cérebro e naquelas duas luzes teimosas em se extinguir. Olhei as minhas mãos, os dedos que fabricam acordes maravilhosos nas cordas do instrumento e entristeci-me por me sentir tão incapaz e pequenino perante uma noite que, sabe-se lá porquê, decidiu abrir-se para mim.
Onde estás?
Era já madrugada, dentro das quatro paredes daquelas duas habitações, alguém ultimava tarefas, talvez fossem duas mulheres a preparar roupas para o dia seguinte, a limpar, a lavar, a passar a ferro os trapos de crianças que já dormiam sossegadas acumulado trabalho que se repetiria todos os dias, todos os anos, nos seus lares ou nos silos da cidade surpreendente limpando o sujo de estranhos para poderem sobreviver, ou outros, caridosos que acudiam a idosos enfermos, desesperados na solidão dos dias e das intermináveis noites de sofrimento.
Apeteceu-me gritar nessa hora deslumbrante. Debruçado num cenário maravilhoso, desejava, queria que os acordes e sons da minha guitarra pudessem chegar até aquelas duas moradias e, milagrosamente amenizassem as canseiras de uma ou outra mulher martirizada ou suavizassem os tormentos de um velho doente e a paz e tranquilidade que o corpo e o espírito anseiam, descessem para todos sobre o mundo.
O rio brilhava reflectido o luar, eram desenhos rabiscados na água transformada em tela de todos os conceitos de abstraccionismos, era decomposição da figura, a simplificação das formas, os diferentes usos da cor, o descarte da perspectiva, das técnicas de modelagem, a rejeição natural dos jogos convencionais de sombra e luz, ruídos, melodias, sucessão coerente de sons e silêncios com identidade própria, estranhas formas a gritar na penumbra. O pintor é louco!
Só o rio Douro me sentia e compreendia sem pronunciar uma só palavra. Permaneci acordado até a última luz se apagar nas casas e, a magia da noite que me fascinava, quando já esquecido do tempo, dos fantasmas que me perseguem desde que nasci, ia-me falando do clarão distante apontando a cidade surpreendente onde os meus sonhos de felicidade se desvaneciam em cada grito lancinante dos que já não têm lá abrigo.
A madrugada e eu protótipo de futuro fantasma, isolados e perdidos algures numa outra dimensão e tu a chegares demasiado tarde ao princípio da minha noite.
Onde estás?
Quando amanhecer tu vais perguntar-me constantemente por que não consigo ser feliz!
Dois barcos no rio a ressuscitar das sombras, criação da minha mente exausta, duas esperançam ou apenas mais duas alucinações a juntar ao imenso rol de acontecimentos de uma vida.
A cidade vai acordar daqui a pouco. O clarão artificial que denunciava a sua presença, confundir-se-á com a luz intensa de um sol lindo de mais um dia que nasce e, liberta dos lixos nocturnos, resplandecerá distanciada e longe dos meus olhos de mendigo.
Publicado no livro Fado Falado – Crónicas do Facebook
SOBRE O AUTOR: Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro; Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras – Conversas com um Rio; Fado Falado – Crónicas do Facebook e Amanhecer (Poesia). Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.