ESTAMOS a ver um homem alto, olhos azuis, com umas tranças ao estilo rastafári a saírem de um gorro azul-escuro. Caminha de passo estugado, puxando uma caixa de madeira. A seu lado, sem ficar para trás, segue uma criança. Cada um leva uma ave ao ombro. Vestem-se de roupa puída pelo sol e as costas pintalgadas da sujidade dos animais.
Estamos a vê-los a fazerem o trajeto da Avenida Rodrigues de Freitas em direção à Baixa (de onde virão?). Para quem, nos últimos tempos, não frequenta a Baixa, é gente muito estranha. Serão sem-abrigo, artistas de circo ou de rua? Uma coisa é certa: têm ar de serem estrangeiros.
Um dia, ao final da tarde, cruzamo-nos com eles na entrada da Biblioteca Pública de São Lázaro. Era a oportunidade para desvendar os seres enigmáticos que perturbavam a normalidade da cidade, pelo menos naquela zona (a Clara Não chama-lhe uma vila dentro da cidade).
O interrogatório começou logo ali e prolongou-se, mais tarde, na casa onde residiam em Campanhã.
Eis então o que descobrimos do Marcus & Companhia (o & comercial é só para contrariar).
Quem são e de onde vieram?
Identifica-se somente por Marcus, apesar de ter inscrito na caixa do correio o nome da família: Viullanne. Nasceu em Nancy, França, no ano de 1970. Ainda estudou dois anos na universidade na área do comércio, mas não gostou. Esteve três ou quatro anos a cuidar de idosos e a seguir foi para o Bangladesh e Vietname trabalhar numa ONG. É importante fazer um trabalho que faz sentido, em que a pessoa se sinta bem. Não deve servir só para ganhar dinheiro. Diz.
Está casado com a Valerie, oriunda do nordeste de França como ele, e que já viveu 4 anos na Dinamarca.
Têm três filhos: o Merlin de 8 anos; o Zacarias com 6 anos, que o acompanha nos espetáculos, e o Zorra de poucos meses de idade.
Por que escolheram o Porto para viver?
Marcus e a mulher venderam uma casa que tinham em França e com o dinheiro compraram outra no Porto. Estão cá há cerca de 4 anos.
Os motivos da escolha de Portugal são simples de enumerar. Havia muita confusão em França, a começar pela onda de xenofobia propagada por Marie Le Pen. Depois aquele é um país que aposta na energia nuclear (veja-se o que se passou em Fukushima) e que vende muito armamento. França é o quarto país que mais exporta armas e ainda assim se fala do combate aos terroristas. É uma hipocrisia! Quando vendemos armas a outros países para fomentar ou manter conflitos não podemos pedir a paz. Ou fazemos uma coisa ou outra. A política francesa não é muito recomendável.
Já Portugal, apesar de pobre, não é miserável. Permite ter uma vida tranquila, sossegada, sem muita poluição industrial. Isto sem falar do azeite e das laranjas: muito bons!
O Marcus e família estão convencidos de que a vida é uma aventura. Agora é Portugal, depois não se sabe, talvez outro continente, outro país, ou até acabem por morrer por cá.
Viver no Porto foi um acidente. Quando vieram de França não pensavam em ficar na cidade. Calhou! É a vida! Por enquanto tem sido o melhor sítio para ganharem dinheiro.
O que faz o Marcus?
Marcus pertence a uma família de artistas. Em França dedicava-se muito à escultura com materiais reciclados. Por aqui continua a ser artista, mas de rua.
Toca realejo, o que já fazia em França de modo esporádico, e trabalha com passarinhos e marionetas. Tenta criar uma atmosfera mágica. O espetáculo que apresenta nas ruas do Porto dura poucos minutos. É original e do agrado de muitas pessoas, em especial dos turistas, que ficam surpreendidos com a atuação. Das crianças nem se fala, ficam encantadas (será por causa do Zacarias?).
É muito conhecido na Baixa onde criou amigos entre os vendedores e outros artistas de rua.
Um aparte. Agora que há mais turistas no Porto, confidencia que é bom para todos, incluindo os artistas de rua. Mas por outro lado, muitos turistas alteram a alma do Porto. Se o Porto passar a ser uma cidade só para turista ver deixa de ser o Porto. Isso já não é bom.
E como se governam?
Antes de entrar nos pormenores, Marcus vai adiantando que não é preciso muito dinheiro para se viver. Ele e a família não têm telemóvel, computador, frigorífico ou televisão. Não pagam renda, nem qualquer prestação ao banco.
Aprenderam a viver com pouco dinheiro na terra natal. Para o Marcus e Valerie, a maioria das pessoas acha que precisa de muito dinheiro para poder comprar… muitas coisas. Ora, se comprarmos menos, de menos dinheiro precisaremos. O que até é importante para o planeta. Se todos vivêssemos como nos Estados Unidos precisaríamos de sete planetas para viver. Não nascemos na terra para fazer compras no Continente (O que prende é ir ao Continente, já dizia a errata n.º 93) e para comprar um carro novo de dois em dois anos (têm um carro e uma motorizada antigos).
Ou seja, não são consumidores na verdadeira aceção da palavra. As maiores despesas que têm são o externato, as aulas de música das crianças e a alimentação.
Não fumam e não bebem álcool, à exceção de um cálice de vinho do Porto em ocasiões especiais, como quando tiveram a visita dos familiares. E, claro, não consomem drogas.
Têm muito cuidado com a alimentação (é como se fosse um medicamento). Não são vegetarianos, mas também não abusam da carne e do peixe. Comem muitos legumes, fruta, arroz e pão escuro. Evitam as batatas fritas, a coca-cola e outros refrigerantes e alimentos açucarados.
No quintal contíguo à casa cultivam vegetais para consumo próprio. Mas é uma atividade frustrante. Tudo por causa dos gatos que lhes estragam o amanho da terra (o sentimento de contrariedade é tão forte que as feições do Marcus se contorcem todas).
Até agora têm tido poucos problemas de saúde, que se resumem a umas constipações. Tudo, explica, porque o Porto é muito húmido e com elevadas diferenças de temperatura. Em contraste com os Açores, onde já estiveram e gostaram muito por não ter uma grande amplitude térmica.
Uma confissão. A família de Valerie nunca foi consumista, contou. Apesar disso, nunca pensou viver desta forma. Marcus contaminou-a. (Tratou-se de uma confissão livre, espontânea, integral e sem reservas, como previsto no artigo 344.º, n.º 2 alínea a) do Código de Processo Penal).
Em resumo: vão-se governando.
Que estilo de vida é este?
O Marcus diz que é importante fazer as coisas de que se gosta. A vida também é poesia. É uma visão de artista, mas que exige muita coerência. Por exemplo, na política devemos agir como pensamos.
Esclarece que é filho único e que os pais não pensavam assim. Eram diferentes. Mas como encontrou pessoas muito inteligentes, sensíveis e lúcidas, decidiu seguir aquele estilo de vida (viver com pouco dinheiro e fazer o que gosta).
Na parte espiritual, aprendeu a fazer meditação e a viver em tranquilidade. Sem yoga, sem guru, sem nada. O casal não professa nenhuma religião, mas acreditam num deus como um grande arquiteto do universo. Desconhecem se tem barba, se é bom ou mau, se é preto ou branco. Por isso, dispensam a mediação do Papa nesta ligação com algo superior a eles.
Admitem que têm um aspeto esquisito, diferente do comum das pessoas, porém não deixam de ser humanos como os outros. São estranhos, é verdade, mas limpos por fora e por dentro.
O importante é viver em coerência.
Deduz-se que se relacionam pouco com os vizinhos (zona de Campanhã em frente à estação do Metro). Aliás, evitam falar dos outros. Tentam viver tranquilamente. São considerados os estrangeiros do lugar.
Esta frugalidade económica, associada à discrição social, não os livrou de serem assaltados duas ou três vezes e de lhes levarem três pássaros.
No dia-a-dia, levantam-se pelas 6:30 da manhã e deitam-se entre as 21h e as 21:30h, as crianças mais cedo, entre as 19:30h e as 20h. De manhã cuidam dos passarinhos, do jardim, leem e ainda têm tempo para atuar na Baixa (Marcus e Zacarias). À tarde ficam em casa a fazer uma sesta. No verão, com os dias mais compridos, voltam à Baixa ao fim da tarde.
Gostam de música do mundo, de Jordi Savall e de música antiga. Músicas com alma. E de poesia. Especialmente de Rimbaud, que teve uma vida de fogo. Foi como um cometa, observa Marcus. Dizia que a poesia que não se põe na vida volta sob a forma de crimes horríveis.
Desabafo: o mundo atual é muito violento por falta de poesia.
Cuidado com a tecnologia!
Não estão contra a tecnologia, mas tentam manter-se distantes da sua influência. Reconhecem que é importante porque simplifica a vida. Só que não é nada inocente. É viciante.
Para Marcus, fazem-se muitas guerras por causa da tecnologia. Para se fazer um telemóvel, por exemplo, é preciso extrair minerais da terra, em África ou na Mongólia. E prossegue: o mundo da tecnologia cria a necessidade de termos mais e mais, melhor e melhor. Estamos a ser hipnotizados pela tecnologia.
E como se atualizam? Bastam 5 minutos de consulta na internet (Biblioteca Pública de São Lázaro) para saber como vai o mundo.
E acrescenta: alguma informação não é verdadeira. Destina-se a contaminar a tranquilidade das pessoas, para as pessoas terem medo. Isso é bom para a sociedade de consumo, para aumentar o consumo de medicamentos, de açúcar, de álcool e de drogas.
Por exemplo: a mãe do Marcus vê muita televisão e quando acorda de manhã fica deprimida. Porquê? Porque só vê coisas tristes!
Quando se abre um jornal, que são escravos da publicidade, é só crimes e acidentes. Nós não precisamos disso. Quando temos uma vida tranquila, não precisamos de muitas coisas. A vida é suficiente para ser vivida. Fala a voz da experiência.
Em conclusão: a tecnologia é o contrário da poesia.
Exploração infantil?
Há quem diga que fazem exploração infantil com o Zacarias. O que já motivou uma visita da Comissão de Proteção de Menores a casa. Foram saber se tinham… casa e se as crianças iam à escola. No fim acharam tudo normal.
Para quem diz que eles fazem exploração infantil, contrapõem com uma sociedade de consumo que explora as crianças com a tecnologia, a alimentação e a televisão. Então a televisão é a maior das explorações, que nos ensina a comprar muitas coisas inúteis.
Marcus e Valerie defendem que as crianças têm de brincar mais à bola, andar de bicicleta e tocar música. Como sucede com o Zacarias, que frequenta a pré-escola e o irmão mais velho, Merlin, o terceiro ano de escolaridade. Ambos estudam num externato perto de casa.
Segundo nos contam, Marcus e Valerie, os filhos não reclamam da vida que levam porque lhes foram explicando a opção por aquele modo de vida.
Todos em casa gostam de ler e de ver filmes antigos. Têm um projetor, o que lhes permite escolher os filmes para as crianças. É importante que as crianças tenham uma cultura dos filmes. Concluem.
O vindo de relatar fica à consideração da Comissão de Proteção de Menores como complemento do relatório já efetuado.
Uma quinta na Serra da Arada
A próxima paragem há de ser a Serra da Arada. Marcus e família compraram um terreno perto de S. Pedro Sul onde esperam ir viver no próximo ano (2018). O interior é bem mais preferível à vida urbana. Não há tanta poluição como no Porto e tem a vantagem de se poder viver do que a terra dá (haverá gatos por lá?).
A quinta fica em Santa Cruz da Trapa, a 800 metros de altitude. Tem uma casa pequena, terrenos em socalco, água da serra e castanheiros. É uma terra muito fértil.
Tem tudo para ser a terra prometida! (Dizemos nós)
NOTA DO EDITOR/AUTOR: i) a entrevista foi feita em meados de 2017, mas como as respostas (de um português afrancesado) só foram transcritas no final desse ano, não foi possível confrontar o Marcus com o resultado final, porque, entretanto, tinham acabado de ir viver para S. Pedro do Sul. Com a chegada do bom tempo, voltaram para o Porto aos fins-de-semana. Aprovado que foi o texto aqui fica a sua publicação. ii) se o leitor tiver dúvidas sobre quem diz o quê pense sempre que é o Marcus. iii) o texto foi revisto pela Patrícia Santos