O DIA amanhece alvoraçado, não insistisse o Sol em nascer a este donde estou, diria que o crepúsculo se fazia anunciar pelas nuvens negras de fuligem. Vai quente Outubro e certamente algum provérbio popular terá resposta ao amordaçado bafio que se encosta a mim numa lânguida provocação.

De costas para mim, para o perigo diria, também, trajando verde tropa, uma espécie de soldado apetrechado no ofício de desimpedir a golpes de fios grossos de plástico, uma catanada aqui, uma cavadela ali, o soprador encostado esbaforido à borda onde o penedo se protubera na mimificação expressiva e clássica de quem afaga a barriga, camisa aberta, o baraço ardente a pender dos lábios encarnados e encardidos de cieiro e cerveja seca.

Desligo o carro, a manhã de sábado, fresca ainda, espera por mim como eu espero pelo regresso resplandecente da minha ignorância infantil de pensar que o céu nocturno é um esburacado lençol a tapar o paraíso, por ondem passam as luzes a que, erradamente, chamamos estrelas. À minha frente, num movimento similar a uma dança coreografa na perfeição, porque dançada sozinha, da direita para e esquerda, volvendo, da esquerda para a direita, o homem com os sonhos silenciados pelos auscultadores laranjas e abafados pelo capacete de viseira enredada em si mesma, vai torneando e esculpindo a estrada pelo lixo, levando consigo restos de erva, restolhos de vidas que se vão escapando ao alcatrão, paralelos, escarpas graníticas dos montes de Penafiel, copos de plástico, garrafas de cerveja, e outros dejetos expurgados da devassa aptidão do Homem em ser-se ralé e tentar fazer raízes assim mesmo.

Quando pausa por momentos a máquina, este moderno cantoneiro olha para trás e vê-me, parado, vidro aberto, o braço pendurado na janela do condutor. Ergo a mão em cumprimento e meço o comprimento de mim a ele, o sorriso tímido e envergonhado por não ter ouvido, pede-me desculpa, recolhe a máquina, mede os passos até ao início do resvalo e manda-me prosseguir. Ligo o carro, destravo-o e sigo lentamente, silencio o rádio, a música que brota deste silêncio matinal, maior agora sem o rugir da traquineta, é-me o essencial para deixar-me seguir até ele, levantar o braço e estender-lhe a mão. Retira a luva e a transpirada mão encontra-se com a minha, este aperto firme escora o que separa a matéria do que somos daquela que nunca seremos, a essencialidade simples de se ser simplesmente essencial. O diálogo terminou rápido, outra viatura surge de frente e a estreita estrada obriga a atenção e cruzamento medido com os espelhos recolhidos. Depois de rápida troca de via, endireito o espelho e olho para trás, ele, ancorado ao aparelhómetro que facilita a tarefa sobremaneira, ergue a mão, o cigarro ao canto da boca despedaça-se em cinza, as palavras ficaram-lhe também presas no pigarro, da mesma forma que as minhas se escondem por detrás do silêncio que me fala.

Engreno a primeira velocidade, o desnível facilita o arranque, vou seguindo em frente olhando pelo retrovisor a dança, o cheiro a verdura cortada vai-me dentro do carro e os sonhos, de cantoneiro, como ele disse, estão ali ao virar da esquina romba, transportados pelo vento quando o soprador se enche de vácuo e cospe-se indiferente, sonoramente, varrendo para longe as conversas voláteis entre interlocutores fúteis.

SOBRE O AUTOR: Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. Apaixonado por Trás-os-Montes e Açores em geral e pela vida em particular, é co-autor das exposições de fotografia e poesia “Alma Tua“, subordinada ao vale do Tua, e “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordina à Rota do Românico, publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Publica regularmente crónicas na revista online “Bird Magazine” e começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.

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