Do que eu sinto verdadeiramente falta é daquele cheiro intenso a café ou cevada, ou lá o que era. Era coada numa mama gigantesca por cima da banca para que não ficasse com pó. E a minha áspera avó fazia-a tão bem, àquela cevada que sabia pela vida, misturada com um pouco de leite e pão com manteiga e pouco mais. Também me apetece muito a sopa que ela fazia com uma couve rija e feijão vermelho que era uma coisa tremenda. Ou a outra sopa de arroz e batata que era sensacional. Ou até me sabia agora bem, aos sábados, com a família quase toda reunida, o meu pai não ia, nem o meu tio, o celebérrimo arroz de frango. Com um bocado de jeito até digo que não me importava se fosse de cabidela.
E o Sr. João das castanhas? Isso sim. Posso procurar o resto da vida, mas castanhas como aquelas, quentinhas e boas aconchegadas num saco enorme de serapilheira, nunca encontrarei. É certo que às vezes o confundia com o homem do saco que me levaria para onde nunca mais voltasse quando me portava mal. Mas as castanhas ninguém mas tirava do canto da alma que faz sossegar o medo.
Do que eu sinto verdadeiramente falta é de jogar à bola como se disso dependesse o destino e sobrevivência do mundo. De jogar e fazer jogar, de fazer passes em profundidade, de ser o Kaltz, que por acaso até era defesa, de ser o Breitner, de ser mais tarde o Rummenigge. O importante era fintar toda a equipa adversária, guarda-redes incluído, e depois colocar a bola sobre a linha imaginária de golo e de joelhos no chão empurrá-la com a cabeça. É que não havia postes, trave ou rede. Se chutássemos de longe a equipa adversária diria que não tinha entrado. Que saíra pelo lado ou por cima. Este sim era o drama do futebol português. Ninguém era parvo para chutar de longe! Do parapeito às vezes o meu catequista via-me, lá do cimo do terceiro anel. Depois elogiava-me publicamente. Eu inchava. Outras vezes apetecia-me desaparecer. Como quando o Nuno ia isolado para a baliza e eu tive de fazer um corte em desespero que vai acertar em cheio numa velha que estava na varanda a estender roupa. Meu Deus. Quase que morria. Morríamos. Eu e ela. Foram momentos intermináveis. Depois lá ganhei coragem e fui pedir-lhe desculpa, a ela à filha, ao genro… É óbvio que fui acima de tudo recuperar a bola.
E quando ela ia parar ao telhado da fábrica é que era. Alguém tinha de subir uma rede de arame e ir até lá cima sem fazer barulho e chegar até à caleira que era onde o esférico se alojava, anichava, para então o devolver ao terreno de jogo. Só que os gajos da fábrica a certa altura resolveram colocar corrente eléctrica na rede. Então começava a odisseia com um pouco mais de adrenalina, logo antes de subirmos ao trapézio.
Gostava era de que alguém me tivesse filmado enquanto jogava. Nunca soube como é que era o meu estilo. Se tinha pinta. Ou se era um tractor. Eu acho que era um jogador elegante, mas nunca o pude comprovar com imagens. O que eu sei é que era um poço de energia. Tanto estava na frente a aparecer nas costas dos defesas como no meio campo a distribuir jogo, ou mesmo na defesa a cortar jogadas perdidas, como disse. Eu era cansativo de ver jogar. Era o tal carregador de piano. Isso sei eu.
Também nunca ninguém me filmou quando jogava basquete. Aí julgo que tinha estilo a lançar. O basquete acho que é mais artístico. É mais bailado. É mais um par numa pista de dança. O jogador e a bola. E quando estamos os dois juntos o mundo pára. Não há espectadores, não há treinador. Só há colegas porque não somos ciumentos. No futebol não é assim. É que não se acaricia nada nem ninguém com os pés. Digo eu. Mas as nossas mãos abertas a deslizar suavemente na bola, a sentir-lhe a textura, o peso, a elasticidade, a meiga curvatura, isso só é possível no basquete. E depois de tantas carícias, lançá-la à vida com perícia, elegância, por cima de todas as cabeças até ao céu.
Do que eu sinto verdadeiramente falta é do grupo de música que tocava no S. João. Nem me importava que me ocupassem o tal terreno de jogo. Vinham os homens montar o palco com o scafolding, a madeira, a lona. Depois os cabos, a luz o som. Depois os testes, o sound check, como se diz agora. E depois os mens. Cada qual com mais style do que o outro. A sério. Eles tocavam bem. As músicas da época. E até outras como as dos Shadows. Fiquei impressionado foi com o baterista que media para aí dois metros e que tinha de se curvar todo para conseguir tocar. E eu armado à parvo comecei a andar na rua todo curvado. Ia para a escola assim e tudo. Ainda hoje, para dizer verdade…
Do que eu sinto verdadeiramente falta é de quando depois o largo do bairro se enchia com gente de todo lado a dançar, a beber, a namorar, a divertir-se. E nós da janela mesmo no rés-do-chão a vermos aquilo tudo, a sentirmos aquilo tudo. A vermos as pessoas a profanar o nosso lugar sagrado das brincadeiras. Porque não era só o futebol. Eram as escondidas, a sameira, a minha mãe dá licença, a fitinha azul, e até a verdade e consequência. A vermos aquele profanar e a não nos importarmos. Porque, não sabíamos porquê, o nosso coração batia mais forte. Era talvez a música, os graves a abanar o bairro todo. A guitarra a uivar. Eu sei lá. Acho que eram as moças a gingar, a contorcer-se, a fazer esvoaçar as saias. Só pode ser isso. E eu do parapeito da janela apreciava estou certo, não me lembro bem, os parapeitos delas, assim a espreitar tanto como eu.
Do que eu sinto verdadeiramente falta é de depois irmos ver o fogo ao fundo da rua.
Paulo José Borges
História lida por Miguel Guilherme