AVENIDA Marechal Gomes da Costa, Porto, uma cidade num qualquer desígnio Outonal que não nos pende das tonalidades com que estas árvores imponentes (qualquer árvore é imponente, o Homem é apenas indiferente) urdem a paisagem.

Não sei o que me atrai mais, se o brilho oponente e invisível do orgulho com que as árvores ainda seguram algumas das suas folhas, se o desamparado abraço com que umas boas décadas de gente seguram um outro corpo desengonçado, se pelo vício, se por doença, não o sei.

Apenas o seu íntimo, se por um acaso calhar, hoje em dia raro, de o seu, o íntimo, ser coisa transparente e dotada de honestidade, o saberá. Ele e Deus, que tudo sabe (e por isso me apazigua, nesta e em qualquer rua).

Pára uma e outra ambulância, Amarante, Felgueiras e outras proveniências, distantes demais para a proximidade desejada de quem se vê agarrado a uma incapacidade, momentânea ou permanente. Os piscas vão trazendo um pouco de urgência já não urgente, assinalam a brevidade da paragem e colorem, intermitentemente, a tarde que se arrasta languidamente, pressentindo talvez que a quadra Natalícia se aproxima.

De dentro do carro, as gotículas gordas, roliças, sustêm a respiração para escapar à gravidade e multiplicam as cores alaranjadas, obrigando-me a focar o olhar fora do para-brisas.

A porta lateral da ambulância rubra anima-se e sai em primeiro lugar, parecendo animado de vida, um andarilho, as raízes metálicas, inoxidáveis, de uma árvore de seiva viva em caule morto.

Ainda não me tinha emocionado, havia de acontecer agora.

Um Bombeiro, gente dos seus cinquentas, cara austera, sai da ambulância, pousa o andarilho no passeio desnivelado e com um carinho que as ruas da cidade me desabituaram a ver amiúde, alça a perna, a bota militar de um soldado apaziguador calca com veemência o degrau de plástico, entra na ambulância, passa o braço em redor de um peito feminino, abraçando com força a alma de um corpo que não se levanta, içando à vida quem a ela ainda se agarra.

O resto veio depois, mas eu tinha já ali o meu quociente, dividendo e divisor na equação de dividir a bondade pelas pessoas e, não fosse estar atento ao horizonte, quase passava despercebida a folha que se tinha desprendido dela própria, caindo dentro de mim.

SOBRE O AUTOR: Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. Apaixonado por Trás-os-Montes e Açores em geral e pela vida em particular, é co-autor das exposições de fotografia e poesia “Alma Tua“, subordinada ao vale do Tua, e “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordina à Rota do Românico, publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Publica regularmente crónicas na revista online “Bird Magazine” e começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.

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