A PORTA do bar do móvel da sala abre-se, o cheiro característico emana e preenche-me o horizonte das memórias. O Natal podia ser apenas isto, abrir a porta com as suas quadrículas envidraçadas, deixando ver os pequenos panos rendados e bordados que pendem das prateleiras onde velhas tachas enferrujadas sustêm o tempo. Mas mais do que o tilintar dos copos ou da velha garrafa de rótulo personalizado, onde se degusta o valor que a mesma custou, o rendado branco apazigua-me o que me habita. Fecho a porta do bar, a televisão lamuria-se das notícias trágicas, entre uma ou outra golfada comenta-se o destino. Eis o meu desatino.

O domingo, tal como a vida, segue o seu curso. Caminho na tarde curta ao encontro de um Sol tímido, espreitando, ele e eu, por entre as nuvens cinzentamente coloridas, hoje mais espartanas abrindo caminho ao frio que se precipita. Afinal é Natal e traz-me consigo o futuro que me habita.

Em épocas, seria suficiente o olhar inocente do jardineiro municipal que, para se abrigar da chuva, sentava-se na cabine telefónica desprovida de telefone, desembrulhava o lanche da manhã enquanto com um pé balançava o carrinho, como que embalando carinhosamente as folhas que esgravatando apanhara do chão.

Em épocas, seria suficiente o olhar sorridente do amigo que, ruidosamente, ainda que sem intencionalidade, parava o tractor verde, velho, para dar boleia ao amigo que se desloca a pé no empedrado irregular da rua que me viu pedalar imaginando-me um herói da esquadrilha. E o amigo, entre o apertar de mão em cumprimento e o puxar de mão para apeamento, pendura a moca do guarda-chuva na gola da camisa desbotada.

Em épocas, seria suficiente o olhar compassivo, mas hoje, porque estás quase a nascer, cabe-me apenas a conversa com o viticultor amador, porque ama nas palavras e gestos com que poda as vides verdes e despidas, de onde pendem os cachos que o calor abrasou e secou, a esperança no futuro se deus assim quiser, amarrando as fiteiras e prendendo a despenteada e desregrada videira para que o tempo não a pode, usando termos que desconheço, pois parei apenas para que a viuvez não o deixe sozinho na negritude de uma veste invisível e a horta, o recreio animado de quem à terra se aporta, traga frutos que florem em mim e que nunca vi, quando ao fechar o vidro do carro o ouço clamar “tudo de bom para ti!”.

Nesta época, talvez me torne pessoa, melhor, ou torga, se deus assim me quiser e puder, ocupado que está agora, pois estás quase a nascer.

SOBRE O AUTOR: Miguel Gomes, nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. Apaixonado por Trás-os-Montes e Açores em geral e pela vida em particular, é co-autor das exposições de fotografia e poesia “Alma Tua“, subordinada ao vale do Tua, e “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordina à Rota do Românico, publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Publica regularmente crónicas na revista online “Bird Magazine” e começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.

Texto publicado originalmente em  23 de Dezembro de 2018

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