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Epifania dos ventos

Epifania dos ventos

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ERA uma reentrância na margem do rio, um remanso, um porto de abrigo natural, um sitio lindo desenhado pelos deuses de antigamente que para ali vinham repousar após épicos e memoráveis feitos em grandes batalhas travadas algures nas terras altas do Douro, a montante do rio e na defesa de um espaço que povos estrangeiros cobiçaram desde sempre.

Muitas vezes por ali passamos e ficamos a contemplar o bailado das folhas das árvores perfiladas nas margens e agitadas por efeito de suaves brisas , os barcos Rabelos que passavam a caminhar de mãos dadas com o rio, a tatear cuidadosamente a água e levavam  vasilhame  cheio de vinho fino  que vinham dos lados da Régua com destino ao cais de  Gaia  sob o olhar atento das pedregosas margens, saboreando cada momento como se fosse o último e por isso, apenas levitassem sobre o lençol liquido como se a viajem fosse interminável, etérea e eterna neste cenário encantador. Os remos em repouso debruçados nas amuras da embarcação de madeira, pousados sobre a corrente, à altura de de uma mão, assemelhavam-se a asas abertas de pássaros gigantes, deuses sobrenaturais extraídos do tempo remoto da mitologia ou talvez apenas elegantes garças reais, algumas das muitas que o rio tem, numa suave e perfeita amaragem para não perturbarem os sagrados silêncios que o rio guardava e continua a guardar dentro do seu coração feito de água.

Tudo por ali ainda me faz lembrar os nossos puros tempos de crianças pequeninas, as brincadeiras inocentes, os desejos comuns que eram sonhos tão grandes como o mundo que não conhecíamos e, até os barcos de pesca  abraçados uns aos outros enquanto aguardavam a vez do lançar das redes amontoadas na proa, pareciam enamorados do azul do céu nos dias maravilhosos de sol e também das estrelas que cintilavam no firmamento celeste nas noites fantásticas desses anos felizes.

Havia pássaros, bandos deles a esvoaçar nas árvores e a voar no espaço aéreo, até gaivotas que subiam a pé o céu do rio para vir aqui saborear a aragem doce, melros enamorados da primavera a lançar ao vento variações musicais encantadoras e rolas que cantavam incessantemente apaixonantes e suaves melodias. O perfume da terra espalhava-se no ar inebriando a atmosfera com a mistura dessas fragrâncias inimitáveis. Foi o paraíso dos nossos primeiros anos de vida. O reduto que nos protegia as medonhas solidões de emigrantes, gente que deixava tudo por causa da fome e que por ali passavam a navegar com destinos incertos.

Nessa época eras uma aparição divina, um raio de intensa e branca luz que iluminava a minha e as vidas dos nossos companheiros de existência, também as margens do rio e se refletia em estranhos bailados nas caprichosas águas, também um clarão sobrenatural a envolver de luz o sitio da nossa doce meninice, um anjo que descia do céu ao nosso encontro e que ainda hoje me transporta até aos longínquos limites da imaginação literária. Eras tão pequenina, entre ti e todas as outras crianças que compunham o ramalhete de anjos da nossa pequena aldeia, havia uma diferença de tamanho muito grande. Eu era ainda pequeno e tu de pé ao meu lado, chagavas-me ao coração com a cabecita loira quando te querias refugiar de algum de nós  que te perseguia  a jogar às escondidas. Eu colocava-te a minha mão na cabecinha e tu aliviada, deixavas-te ficar sob esse escudo protector por algum tempo. As minhas mãos ainda são as mesmas mas já não dão aconchego a ninguém. Devo ter perdido o dom ou foi o somatório de pecados de uma vida, a maldade que deixei morar dentro de mim, que fez com que Deus me retirasse esse poder de confortar os mais necessitados.

Quando nos juntávamos numa das muitas brincadeira, as mãos de todos nós uniam-se, os olhares inocentes fundiam-se uns nos outros e eu, cego pela tua intensa claridade, só via aquilo que tu vias e alheio a tudo em meu redor, apenas sentia o apressado palpitar do teu coração pequenino posto no meu que transbordava feliz as margens do meu peito. Se houvesse pureza no amor que tanto se  apregoa, se esse sentimento existisse límpido e verdadeiro no coração das pessoas, liberto de amarras, de preconceitos e de falsidades, nada melhor o poderia representar do que a imagem que deixamos petrificada num determinado instante das nossas vidas comuns num agradável recanto deste rio que nos viu nascer.

Se eu pudesse voltar a esse passado que a memória hoje alcança, havia de te enfeitar os cabelos com os malmequeres com que construías os cordões amarelos que orgulhosamente decoravas o pescoço e balançavam no teu peito quando corrias feliz pela areia da praia. Ou enfeitar-te a fronte vagarosamente com grinaldas das flores silvestres da margem do rio e das quais tanto gostavas.

Lembro-me de uma vez em que sentados à beira do rio a mexer na água com uns raminhos de amieiro tentando distorcer as nossas imagens lá refletidas, alterar a realidade como se fossemos visionários num mundo ainda para nós limitado e inadvertidamente nos atrevessemos a mudar o futuro que vinha distante, conversamos:

– Que queres ser quando fores grande, perguntei-te.

– Quando for grande quero casar com um príncipe muito rico que more num palácio, disseste com os olhos postos num lugar que só existia na tua fantasiosa imaginação.

Depois uma pausa e uma barco a vir.

– E tu, com quem vais querer casar quando fores grande?

Nesse preciso momento passou o barco Rabelo e as passadas dele a bater na água retirou-nos a atenção, distraiu-nos, desfez a magia. Era sempre assim, um barco significava  a liberdade, a materialização da cidade do Porto que nos ocupava os sonhos e que nunca tínhamos visto. Os barcos iam para lá, sabíamos. Até hoje nunca te dei  uma resposta apesar de nesses escassos segundos de intervalo, ela ter ganho forma e se ter concretizado no meu pensamento. Ia dizer, apetecia-me dizer, mas ao longo das nossas vidas há sempre um redemoinho nas águas do rio, um vapor que vem das profundezas onde o coração da água dorme, a desviar intenções iminentes para que o destino nunca deixe de cumprir a sua eterna missão:

– Contigo!

A resposta ecoou com estrondo dentro de mim e decerto também dentro de ti que julgavas como eu, poder decidir dos impulsos que o coração propositadamente nos provoca quando somos ainda propriedade angelical da pureza infantil.

Contigo!

E depois o silencio a vir amortalhar as nossas mãos, a pactuar com  esse fazedor de acontecimentos felizes e dolorosos que separa e une quem muito bem entende.

E depois, as águas do nosso rio levaram com elas as palavras impossíveis para longe dali, para um futuro onde nem eu fui um príncipe rico que morava num palácio nem tu a princesa que sonhaste vir a ser.

Outra vez disse-te; dá-me um beijo! Inclinas-te a cabecita e de olhos fechados roçamos as maçãs do rosto um no outro. Encostamos as faces, unimo-nos pelo coração. Depois sucederam-se mais beijos, singelos toques apenas mas que nos faziam tremer o corpo inteiro.

Sucediam-se as pausas, reflexões interiores inocentes, filosóficas e espontâneas acções das nossas mentes ainda em processo de construção:

– Uma vez vi-te com uma opa branca e um cabeção vermelho, foi no funeral da Anita, ias a chorar, parecias um anjo vestido assim, disse ela.

Talvez tenha sido essa a última vez em que fui um anjo verdadeiro vestido de branco, puro, inocente, incapaz de de qualquer maldade e de julgar e condenar fosse quem fosse. Depois atiraram-me com todos os lixos do mundo, sujaram-me a opa branca, escureceram-me os dias e os anos que vivi até agora.

Outra vez :

– Quando morrer gostava de ir para o céu para onde foi a Anita! Disseste!

– Podes ir se quiseres, respondi!

Depois em soluços, as lágrimas, o diluvio a brotar dos teus olhos da cor do rio e os meus dedos pequeninos a tentar impedir a inundação do teu terno rosto infantil.

As lágrimas, o pranto que guardavas no teu pequeno coração, brotaram dos teus olhos como a força e a intensidade das correntes do rio que quando se enfurece alaga a terra e invade os nossos campos. A Anita tinha cinco anos. Deixou-te, foi dentro de uma urna pequenina, alva como as madrugadas que acordam o rio, toda vestidinha de branco e com flores nos cabelos, deixou-nos a todos órfãos do seu sorriso fraternal e essa fonte que nesse dia te jorrava em catadupa dos olhos, despejava a dor e as saudades que tinhas dela no chão empoeirado da rua do Castelhão.

Depois o silêncio, depois disseste:

– Não, não posso ir para o céu, tenho cinco pecados mortais! Beijei-te cinco vezes e isso é pecado. Se morresse agora sem me confessar, iria para o inferno. O senhor abade disse que Deus não quer pecadores no céu. Que o demónio leva com ele as almas das meninas que derem beijos aos rapazes!

E Deus a ouvir, o rio a ouvir e eu a ouvir sem dizermos uma só palavra que te reconfortasse. A deixarmos-te sofrer inutilmente, a calar a verdade, réus por omissão, por que não se pode mentir a uma criança. Não há perdão para isso. É pecado mortal!

Fiquei apreensivo, amedrontado e sem resposta que te pudesse valer. Nunca te poderia ter respondido sem primeiro ter vivido uma vida , mas hoje posso dizer-te que ao contrário de Deus que é e promove o amor entre todos, o demónio não quer beijos nem afectos, patrocina e incentiva a violência física e verbal, quer insultos, abusos, quer pecados que não sendo organicamente mortais, podem matar o amor dentro de nós e afastar-nos uns dos outros como se fossemos grandes inimigos.

E vieram os anos quase incomputáveis numa vida que vai longa e irremediavelmente nos separou para sempre. Quis perguntar por ti muitas vezes mas tenho medo, receio que me digam que já não pertences a este mundo. Prefiro ter-te viva dentro do coração como lembrança, recuso-me a ser adulto quando me lembro de ti e dos outros todos que não voltei a ver.

Às vezes quando brinco junto ao rio com um raminho de amieiro, tento quebrar a magia do espelho da água como o fazíamos antes, mas não consigo apagar a tua imagem a sorrir para mim.

O rio passa e nós também passamos e eu continuo a ser aquela criança que tu conhecias mas agora maior, de cabelos brancos, com rugas no rosto e que leva pela mão outras crianças pequeninas como nós a ver o rio da nossa meninice.

Neste amanhecer de luz e de sombras em que, pressentindo tempestades, os  ventos gelados sopram alucinados sobre o rio e ressuscitam dentro de mim momentos de afeição e trazem de volta muitos dos sonhos inocentes que todos juntos sonhamos, estejas tu onde estiveres, na terra ou no céu para onde sonhavas ir ter com a Anita, ofereço, neste instante que considero único, uma lembrança, um pensamento cheio de ternura e amor só para ti.

Publicado originalmente in Barcos de Papel

SOBRE O AUTOR: Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro;  Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook e Amanhecer (Poesia). Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.

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