Ulisses e as palavras perdidas
Muito obrigado a todos os meus amigos que me honram com a sua presença neste dia inicial, inteiro e limpo, da primavera, aqui no histórico Café Ceuta, espaço habitado por algumas das personagens deste livro. Frequento o Ceuta há muitos anos, mas sempre de forma irregular. Gosto das mesas, do pé direito alto, do silêncio ao cair da tarde, de certa lentidão no atendimento. É neste café onde encontro, às vezes, o meu amigo António Brás, e sempre lhe pergunto, se o Ulisses, o seu cão, ainda é vivo. Nunca vi o Ulisses, que vive ou vivia, algures em Trás-os-Montes, mas o nome – será o nome – criou entre nós uma amizade infinda.
Quando era estudante, nos cavaquistas anos oitenta, o café que frequentávamos era outro: o Encontro. Um café popular, proletário diria, neorrealista com mobiliário da moda: mesas de fórmica; ao fundo, como se o café fosse um comboio, bancos de pergamoide e, mais além, o salão dos bilhares. É curioso, passámos aí muitas horas, eu e o grupo, que incluía aqui o agora meu editor Paulo Torres Bento, o Frederico Silva, o Avelino Moreira, o Mário, o meu irmão Rui, e nunca escrevi uma linha sobre esse café, onde, não raro, rente à alva, luz apagada, acompanhávamos a cerveja com ovos estrelados. O Encontro, uma ou outra vez o Célia, o Surpresa, que ficava ao lado na nossa residência universitária (no Breyner), muito raramente o célebre Piolho.
Mas este livro, como já ouviram, não é sobre os cafés do Porto, ou sobre os cafés que frequentei e frequento no Porto. É sobre os livros, o mundo dos livros a extinguir-se. A Leitura é agora um pub com nome de personagem russo, fecharam entretanto outras livrarias tradicionais, faliu uma boa soma de editoras que marcaram a história da cultura portuense e do país. Dir-me-ão: para entrar na Lello tens de ir para a longa fila e pagar bilhete. É verdade. Os livros, todavia, não são adereços de fotógrafo amador, com uma escadaria bonita, sem dúvida, ao centro.
As personagens do Pavese no Café Ceuta gostam dos livros. Como é o caso do leitor da segunda narrativa, um bancário que gastou a vida, ou melhor, preencheu a vida à procura de livros. E no final, a sua extraordinária biblioteca foi parar ao farrapeiro de S. Vicente de Paulo. E floresceu de novo: eu acolhi algumas dessas obras, e passei a palavra a amigos, e os amigos a outros amigos, e os livros do leitor enamorado chegaram a muitas e boas mãos.
Confesso, tenho aprendido imenso nos livros que desconhecia.
Como se salva o mundo do livros? Não tenho resposta. Pela minha parte, contribuo lendo as obras mais improváveis, como disse, remidas dos sítios menos previsíveis. Lendo e preservando as palavras. Algumas palavras. Certa vez, deparei com talabarte a obstruir-me a leitura. Fui ao Torrinha, a palavra clareou. Gostei do vocábulo, imaginei-o apropriado a caminhante, a andarilho. Então, para o manter vivo por mais algum tempo, escrevi Homens de Talabarte – habitantes da terra dos homens que andavam a pé.
Outras palavras que ouvi na infância, entre o povo, a minha gente, e me encantaram, trouxe-as também para as páginas desta e de outras obras. Se cada um de nós partilhar as suas palavras, como as mães passam às filhas as argolas de ouro herdadas de outras mulheres da família, talvez não se salve o mundo dos livros – mas manteremos viva a nossa ameaçada língua.
Publicado por Francisco Duarte Mangas