ÀS vezes tenho muitas saudades tuas. Não é só por causa das contradições diárias, dos atropelos do mundo que teima em causar dor aos mais desprotegidos ou dos muitos obstáculos que me aparecem no caminho, é também por que te renego e tento arrancar-te de dentro do meu peito.

É quando me sinto como um barco amarrado a um cais num sítio distante algures no rio, prisioneiro desta tortura e sem poder navegar nas águas tranquilas dessa corrente de água, que me bate no coração a dor de te não ter, esta fome de ti que me corrói sem piedade. Cheio de mágoas, vergo-me ao peso da falta que me fazes para conseguir ser feliz e, numa tentativa desesperada de te materializar, não tiro os olhos das águas do rio que corre para o mar ao teu encontro e vou recordando os aprazíveis dias em que  juravas sentir uma enorme afeição por mim.

Houve tempos em que acreditei cegamente em ti como se tu fosses a alma gémea por que tinha esperado a vida inteira. Disse-te palavras proibidas no tempo em que o amor foi fermentado até crescer e transbordar por já não me caber no coração, mostrei-te o lugar do peito onde se guardam as relíquias sagradas do mais profundo sentir de um ser humano e lá dentro construí um trono para ti.

E vieram os dias frios, as noites escuras, intermináveis e geladas, os perturbantes silêncios dos desertos que nos assaltam alma, a tristeza infinita da paisagem outrora coroada de encanto e beleza aniquilar o sonho maior de uma vida.

Restaram apenas destroços desse naufrágio amoroso, lembranças que atormentam muito mais do que todas as saudades juntas e vão penosamente marcando o compasso dos dias que nos faltam viver.

Neste amanhecer gelado de inverno em que a natureza ainda dorme e sonha e o rio é da cor do mais fino oiro e se ornamenta com milhares de gaivotas famintas que o mar me enviou e o sobrevoam aos gritos, lembrei-me de ti  menina querida dos meus olhos e exausto de tão longa espera, deixei-me transportar nos longos braços das saudades.

SOBRE O AUTOR: Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro;  Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook,  Amanhecer e Barcos de Papel, estes dois últimos de poesia. Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.

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