Um grito medonho ecoou nas profundezas do vale do Douro e fez estremecer as serras em volta. Amplificado pelas fragas da Abitureira, chegou a ouvir-se na quinta de Santa Cruz de Canelas. A manhã era um clarão de luz a avançar sobre o rio que parecia feito de azeite a escorrer pelo regato das Enxureiras mas o mais certo seria pelo riacho das Mestras que trazia, para além de outros detritos, sobras do precioso óleo misturadas na água russa proveniente da azenha da família Sás situada perto da encruzilhada dos três caminhos que levavam à igreja de S. Paulo. O azeite que iluminava o Santíssimo recolhido no Sacrário, era ali separado das azeitonas esmagadas pela pesada roda de granito movida pela força de um um possante boi, sempre às voltas da pia também de granito do lagar.

Em Quebra Fios a manhã despontava quente e linda quando um surdo mudo descalço, remava no barco valboeiro na tentativa de cambar o rio para a margem esquerda até terras de Gondarém, lugar escondido dos olhos da sede da freguesia da Raiva e do centro de concelho de Castelo de Paiva. Ia precisamente no meio do caudal quando soltou das goelas um som estranho e perturbador. Uns instantes depois, como se obedecendo às misteriosas vozes que dormem nas profundezas das águas, recolheu as duas pás, remos com que impulsionava o barco que ficaram deitadas em cruz sobre as amuradas da pequena embarcação deixando-a boiar sem comando por alguns minutos como se fosse uma casca de noz à deriva.

Eram apenas três as personagens a representar uma das mais belas e sublimes cenas do quotidiano ribeirinho transformada em peça teatral magnifica. Um rio de águas tranquilas, um barco carregado de história e um barqueiro de coração tão puro como as águas do rio a desafiar os perfumes matinas, o chilrear das aves, a claridade da aurora que rompia vagarosa por detrás da serra do Senhor dos Remédios em Rio de Moinhos e lhe batia em cheio no rosto despertando tranquilamente toda a natureza.

Descobriu-se, tirou a velha mitra que lhe cobria os cabelos ralos e brancos e de pé no meio do barco, parecia que orava a algum Deus desconhecido. De repente as mãos pesadas da criatura postas em forma de dois púcaros de barro invertidos, com os dedos a apontar os taburnos do barco, subiram e desceram várias vezes na tentativa de simular a queda de grossas gotas de chuva. Apesar da calmaria do rio e da falta de vento que enfolasse a vela de um Rabelo, como se fosse um infalível meteorologista da época tipo A. Carvalho Serra de Setúbal, anunciava a iminente e brusca mudança dos tempos, o equinócio de Outono, o início de Setembro que, como era habitual arrasava tudo com água.

Ele não sabia ler nem escrever, vivia desde que nasceu, num mundo de silêncio absoluto porque não conseguia ouvir o mais pequeno som que pudesse indicar-lhe a aproximação de pessoas ou até das tempestades que muitas vezes se abatiam sobre a terra e tinha anos que ficavam por ali durante seis meses a atormentar o povo. Porém o conhecimento inato de um surdo, vai muito para além da relativa compreensão humana. Eles não falam por que não conseguem ouvir mas imitem sons e ouvem nítida a voz da terra, recebem os apelos da natureza transmitidos por vibrações através dos pés nus, sentem nas mãos as suas aflições e angústias e no rosto decifram as vozes dos ventos que lhes chegam à mais funda intimidade da alma. Aqueles gritos medonhos saídos do meio da água numa manhã de finais de Agosto, foram ouvidos e compreendidos por ela que tem por missão cuidar de todos principalmente dos mais desprotegidos.

O barco chegou finalmente à outra banda do rio onde alguém esperava pelo barqueiro para o atravessar. Era um agente da Polícia Judiciária que vinha aos fim de semana do Porto visitar a sua terra natal, Gondarém. Impecavelmente vestido, em pé na proa do barco, de chapéu de feltro na cabeça e de pasta de couro na mão direita, o homem era a imagem perfeita de um atento detective sempre de serviço.

O regresso foi demorado, o surdo mudo tentava explicar ao passageiro a aproximação do temporal gesticulando ao mesmo tempo que uns sons imperceptíveis lhe saiam da boca desdentada. O homem para a quem a criatura não era estranha, imitou-o e em sinal de anuência e compreensão, colocou as mãos viradas para baixo em forma de púcaros de barro, levantou-as até à altura da cabeça e desceu-as rapidamente até meio do tronco:

– Sim, dizia ele através da sua rudimentar linguagem gestual. Vem ai muito vento e muita chuva!

Ao ver aquilo, os olhos do mudo de Quebra Fios absorveram toda a luz do amanhecer, iluminaram-se enquanto todo o rosto lhe sorria como o de uma criancinha feliz. Tinha-se feito compreender pelo polícia e quando um homem consegue ser capaz de se fazer compreender por outro homem, cria um espaço de liberdade sem limites e faz o mundo avançar como um barco valboeiro a navegar na magia matinal do rio Douro.

Finalmente o batel do Serafim comandado pelo seu irmão António surdo mudo, dobrou a Pesqueira do Carneiro, entrou na rebessa em marcha lenta e espetou a proa na finíssima areia da praia. Já não era um barco, agora estendido ao sol e de remos outra vez sobrepostos sobre as amuras, era uma garça cinzenta a espreguiçar as asas à beira do rio.

Há tantos mistérios guardados nas memórias das gentes ribeirinhas, alguns são produto de inexplicáveis alucinações, outras ciências primitivas que criam interacção natural com a sábia inteligência do firmamento celeste. Os astros são páginas do grande livro da sabedoria do universo que de vez em quando derrama milenares saberes sobre a terra mas por pura distracção, nem todos conseguem captar a riqueza contida nessa informação gratuita. Já o meu pai dizia que havia ninfas no rio Douro, que algumas vezes, principalmente quando a altas horas da madrugada percorria os terrenos da margem a desafogar as covas de carvão vegetal, as tinha ouvido a cantar nas areias que o rio tem em Hortos e em Pedorido. Mas havia um senão, só as poderia ver quem tivesse o coração livre como o de uma gaivota e muita paciência para suportar longas esperas. O meu pai também não era perfeito como todos os homens e nesse tempo de ditadura, a liberdade custava os olhos da cara e muitas vezes a vida a qualquer cidadão, por isso, apenas conseguia escutar os seus belos cantares sob a branca luz da lua.

Corri para a beira do rio durante muito tempo na esperança de ver essas divindades mas nunca aos meus olhos foi dado presenciar tão belas aparições. Pensei que não tinha o coração puro como as gaivotas, que não era perfeito de coração como requeria a antiga lenda apesar de ser ainda criança e possivelmente seria por já ter nascido numa terra sem liberdade que não conseguia ver as ninfas bailado sob a magnífica luz do luar.

O tempo foi passando até que um dia já adulto, percebi que as ninfas são todas as mulheres deste planeta, que cheias de amor e de ternura, cantam lindas canções de embalar aos seus recém nascidos filhos e que quando se sentem livres e felizes, bailam graciosas sobre as águas e areias de todos os rios e de todos os mares deste mundo.

Boieeeeiro!

O som voltou a ouvir-se lá ao fundo do imenso vale onde corre um rio. Vinha da garganta do arrais de um barco rabelo. Pareceu ser do ti Bento de Bitetos ou do Zeca Léria de Vimieiro. Carregado de pipas de vinho generoso, encalhou nas areias do galheiro ficando impossibilitado de navegar. Foi um pedido de socorro, uma mensagem transmitida para quem tinha juntas de bois que com a suas forças o safariam para águas mais profundas a troco de uma Canada de vinho fino.

Já não existem barcos em Quebra Fios lugar de uma só habitação à beira do rio Douro que pertence à Freguesia de Sebolido, terra onde eu vivi treze anos, situada num alto da margem direita do rio Douro que passa o tempo a olhar para o Santuário do alto da serra de S. Domingos do outro lado do rio que lhe tolhe os possíveis largos horizontes. Tem casas a subir os contrafortes da serra da boneca, campos estendidos em redor da igreja de S. Paulo, um cruzeiro em granito, melhor, um Pelourinho que fala da restauração da Pátria, um conjunto musical, uma Banda Filarmónica e um cruz de ferro espetada no local onde um padre caiu de um cavalo e morreu. Teve um rancho folclórico, um negro morto afogado durante vinte anos dentro de uma ânfora de azeite deixada pelos Romanos na quinta da Abitureira, uma exploração de Lousa, um Leão Pompeu bispo em Malanje de Angola e um Rei Preto sentado todos os dias na primeira mesa do canto superior direito do café/pastelaria do senhor Álvaro e da dona Alice.

Boieeeeiro!

SOBRE O AUTOR: Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro;  Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook,  Amanhecer e Barcos de Papel, estes dois últimos de poesia. Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.

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