COMEÇO a caminhada ao procurar um pouco de paz no vento que passa, resoluto, sem nada me querer dizer, excepto sobre a brevidade do tempo e dele próprio. Três jovens concluem um muro erigido em tijolo, a pá faz escorrer o cimento pelas caneluras, observo com aprovação, enquanto tropeço no piso irregular, como se por baixo de mim brotasse um magma viscoso, frio, que enruga o granito toscamente aplicado. Caminho, parado.
Os dias maiores, hora nova como assim lhe chamam, trazem consigo outras dores. Apesar do confinamento e do frio desencorajador, o conforto da camisola puxada para o pescoço como se me envolvesse a recordação de um adormecer a olhar para a lareira, impele-me a continuar o trajecto pelas ruas cada vez mais desertas, nada beijo, excepto o trio trabalhador de ontem e do parágrafo anterior. Separam-nos as letras, o talento para o trabalho manual e a minha constante indagação. Será que a Sra. Arminda, antiga habitante desta casa pequena, onde o rendilhado adaptado ao quadriculado em que se dividiam as janelas de madeira, aprovaria estas obras? O decapar de memórias para que novas se sucedam e me vejam passar, novamente, por este percurso, talvez mais idoso ou, quem o saberá?, já nem a idade me vista e eu seja espírito, alma ou outra etérea feição de encontro ao destino ou a qualquer distinta ilusão. A noite vai dissipando o dia, escorrega-se pelas frestas onde o tímido astro não chega, imbuído de uma nocturnidade cega, o empedrado limitado ao tempo devolve-me a atenção para os passos. A vida é feita de todos estes nós lassos, excepto os meus, que se desatacam pelas hortênsias. Páro a apreciá-las, a fragilidade falsa de uma planta, ou qualquer outro sonho que nos canta, a bambolear-se porque o vento, senhor do seu próprio lamento, as atira de encontro ao meu olhar. Não fosse a minha alergia, poderia saborear no olfacto, assim, não me resta alternativa além de trazê-las comigo e mostrá-las, de olhos fechados, quando me for entregar ao sono, ainda antes da saudade de casa me adormecer.
Esgueiro-me contra a borda rapada, apoio-me à terra preta que o tractor lavrou e o agricultor de circunstância gradou, à mão, como se deve tratar a pessoa e o torrão. Passa um camião do lixo, as luzes públicas tardam em acordar, levanto a mão ao condutor e aprecio os cavaleiros nocturnos, aos pares (saberás o que ver quando o silêncio amares), cavalgando às costas destes monstros metálicos, salvando o mundo ou os recantos para onde se atiram as superfluidades do que somos e a obscuridade possa acometer-se de uma limpeza, agora que a humanidade está presa.
Encoberto pelo lânguido arrastado nascer nocturno, alguém se esconde da minha saudação acamando uma leira com a soca de madeira, como se a idade o afastasse das tangerinas nascidas mais alto que o braço alçado ou destas frases arrancadas aos golfões, por entre o trinar dos raros veículos, camiões?, e o canto melódico dos meus olhos que se fecham à claridade. O Homem urbano é uma ilha imersa na cidade.
Encontro-me no deambular desta sensação de tristeza, procurando um segredo na frugalidade da minha natureza. Caminho sem palavras enquanto recito, um dia as pessoas serão um lugar bonito.
SOBRE O AUTOR: Miguel Gomes, nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.