A CARA DA NOTÍCIA: Júlio Resende pintor
Completou há dias 85 anos de «uma vida muito animada». Júlio Resende, pintor, cartoonista, autor de histórias aos quadradinhos, ilustrador e «palhaço pobre» em espectáculos radiofónicos, acredita nas pessoas, na harmonia entre os homens. Com a mãe («um vulcão de criatividade, para ela tudo era possível e realizável») aprendeu a pensar e agir tendo em vista o colectivo. Mas mestre recusa o «rótulo» de neo-realista. Já fez tudo o que tinha para fazer na vida: por isso considera-se «uma pessoa extremamente feliz». Agora passa parte do seu tempo a acompanhar grupos de jovens que visitam a Fundação Júlio Resende/Lugar do Desenho, em Valbom, sobre o rio Douro. E a desenhar, «a desenhar o canto dos pássaros». Eis o mestre Resende, «que certezas não tem», num lugar aberto da criatividade.

Pintar como busca de tocar o outro

Não gosta de se ver no papel de mestre, porque certezas «nunca tive». Julio Resende, 85 anos, continua «a pintar e a pensar no mundo», partindo das raízes. Procura de harmonia, de alguém que acredita nos homens

Sente-se bem na figura de mestre?
Quando dizem isso, nem ouço. É algo que não se adapta nada à minha maneira de ser. Eu sempre procurei dialogar com as pessoas, porque as certezas não as tenho.

«Hei-de morrer com preocupações porque elas nunca se extinguem», disse uma vez. Aos 85 anos, Júlio Resende é um homem preocupado?
Estou preocupado e simultaneamente acredito nos homens, na harmonia. Acredito e continuo a acreditar: estou preocupado, mas a preocupação tem na sua profundidade uma confiança. Se não acreditasse na harmonia, a pintura já não tinha sentido. Não pintaria. Pintar para alguém ou para um público que não reage é altamente pungente. A pintura é a busca de tocar em alguém.

Pinta porque ainda há homens preocupados, que se interrogam…
Embora eu sinta que muita gente preocupada esteja tão habituada às situações que talvez não sinta no cerne a preocupação. Mas a arte tem de ser uma chamada de atenção. A obra de arte sempre foi um magnífico testemunho.

O mestre Júlio Resende assume-se como um homem do Porto. E as muitas viagens que fez reforçam essa marca. É um pintor portuense?
Sou. Eu pinto envolto em pessoas e não só numa geografia com a qual eu me sinto bem. As pessoas de certos pontos da cidade reagem muito como eu…

De que locais?
Dos locais onde as pessoas falam a sua linguagem mais forte, persuasiva. Onde não sentem que aquilo que querem expressar pode provocar uma tempestade. Falam de uma maneira natural e dizem aquilo que têm para dizer. Chamo a isto uma certa afeição expressionista: a pessoa fala sem embaraços; a sua estrutura está preparada para que aquilo que tem a dizer e os seus gestos se exteriorizem de uma maneira directa.

No fundo, procura a universalidade sem abdicar as raízes.
Quando falo do homem, falo do homem universal… Toda a minha busca é pintar 0 que sou a pensar no mundo sem fronteiras.

O Porto ainda é a cidade da sua infância?
Vai-se afastando. O homem também é um executor, um ser com muita responsabilidade, dando um contributo para o bem ou para o mal. E eu penso que tem sido um pouco infeliz nesse contributo. A paisagem está alterada: o urbanismo, tão importante na vivência das pessoas, sai muito prejudicado.

A Praça de Carlos Alberto onde viveu a infância está em obras. O que sente quando por lá passa?
Não passo por lá… Abeirei-me já com a visão de um buraco enorme e não me demorei muito. Não voltei mais. É um confronto que desespera, e depois pensei que não é possível voltar atrás.

O Porto perde memória?
Tende a isso. Quando se pretende que a cidade evolua, naturalmente ela tem de seguir por aquilo que é o avanço da técnica: a vida em si altera-se. E as pessoas têm de se adaptar a essas vivências. Mas quando as pessoas têm pundonor pelas raízes só assimila isso tardiamente.

A Capital Europeia da Cultura foi importante para o Porto recuperar a imagem?
Quando se projectava esse acontecimento, achei que se devia informar as pessoas, sobretudo as pessoas com pouca preparação. Era por aí que devíamos começar, e não pelas elites. A maioria não beneficiou nada com o evento. Talvez se interroguem por que foi isto. Agora só vêem buracos, parece que passou por aqui o «El Niño».

Os executores não estavam preparados para o evento?
Acho que houve uma precipitação, sobretudo na parte de concepção. Foram lançados projectos e nós estamos agora a ver os resultados deles… É bom falar disto, mas para tirar uma ilação no futuro. Fiquem surpresos com o que fizeram.

Como vê a política cultural da nova câmara?
Eu estou no momento no inactivo, ou melhor: activo mas no inactivo. Estou um pouco afastado do Porto. Sabe, eu já fiz aquilo que poderia fazer, agora é bom que outros façam, que pensem.

Continua a pintar.
Mas não preciso de me projectar. Um pintor, um criador, estará sempre mais interessado em fazer uma obra que tenha repercussões no seu semelhante do que propriamente fazer obra para A, B ou C. Hoje considero-me uma pessoa extremamente feliz: já fiz.

Foi difícil a carreira de pintor?
No entendimento da minha família não havia grande problema. A minha mãe era um vulcão de criatividade, para ela tudo era possível e realizável; o meu pai, comerciante, era o oposto: rigoroso, pretendia talvez que eu fosse o seu seguidor.

Um percurso diversificado.
No início fiz muitos desenhos para publicidade, muitos bonecos de subsistência. Inventei histórias, fiz cartoons para os jornais… Isso faz parte da minha vida, ainda faço cartoons e dá-me muito gozo. Também trabalhei na rádio.

Na radio?!
Fiz programas para jovens, eu e o meu irmão. Edições semanais, na Rádio Porto, na Renascença…

O que faziam?
Tínhamos uma parelha de palhaços e eu, naturalmente, era o palhaço pobre. Fazíamos espectáculos também no Sport Clube do Porto. A minha mãe tinha uma orquestra infantil, foi precursora do ensino de música por métodos que ela inventou, era uma pessoa muito interessada em juntar pessoas. A minha família pensava sempre no colectivo, e essa marca ficou-me.

Os programas eram feitos só por si e pelo seu irmão?
Entrava mais gente. O meu primo Fernando Lanhas, por exemplo, até cantava nessas emissões! Não havia computadores, a juventude tinha de fazer qualquer coisa: pura invenção, pura criatividade. Tive, como vê, um vida muito animada.

E as audiências?
Recebíamos muita correspondência, quase de todo o país, embora os emissores não fossem muito potentes.

«Até tenho vergonha de ser português»

O mestre foi um dos fundadores do «Grupo dos Independentes», que pretendia agitar a vida cultural do Porto e a Escola de Belas Artes. Conseguiu esse objectivo?
Sabe, às vezes, os contributos não são logo visíveis, mas ficam: fizeram-se exposições no Porto, Coimbra, Lisboa. Foi um movimento que valeu a pena. As coisas são difíceis quando as pessoas não sabem o que se passa e julgam que são felizes – mas não são porque estão desgarradas de um todo.

Levou esses princípios para as Belas Artes, enquanto foi docente?
A escola em si também era especial, dado a figura do director, o mestre Carlos Ramos, de Dórdio Gomes e Barata Feio: um trio magnífico, que chegou a colaborar com o próprio grupo. O movimento surgiu na própria escola, o que é uma coisa curiosa.

O humanista preocupado que retrato faz de Portugal nos dias de hoje?
Há uma coisa que me surpreende um pouco. Há valores, mas estão fora… Soube agora que Portugal vai fechar um consulado na Alemanha: eu acho que isso não é verdade! Não pode ser verdade! Sinto muito estas coisas, fico com uma certa vergonha, não é possível. Tenho até um pouco vergonha de ser português.

Esteve várias vezes no Brasil, país que o marcou. Que comentário faz à eleição de Inácio Lula?
É uma grande expectativa. Antevejo que vai ser um coisa interessante: não é possível um país com tamanho desnivelamento. Eu quero acreditar que vai ser bom. Há certas coisas que têm que acontecer.

Lula é o homem certo?
É um homem que – dada a sua natureza, dado o seu conhecimento da realidade, foi um operário – vai agora enfrentar uma realidade que nunca enfrentou.

Viveu o salazarismo, adverso a quem trazia o povo, a gente humilde, para a tela. No entanto, apesar de marginalizado pela ditadura, o mestre nunca se filiou em qualquer corrente política.
Nunca. Sempre fui independente, cada um tem que falar por si, os outros também têm razão. Não me vejo político. Um artista deve consentir a felicidade dentro de si, porque pensa, porque sente, porque vê como se faz do sensível para tornar uma pessoa feliz. Eu sinto que faço a minha política com a arte: a arte da harmonia, de que vale a pena viver, é isso que eu faço.

Que relação teve com os neo-realistas?
Foi circunstancial. Relações artísticas, de camaradas, alguns aqui do Porto: como sabe, o neo-realismo foi mais forte em Lisboa. Houve quem pensasse que estava a fazer um trabalho dentro da política, quando a verdade é esta: cada um fazia um trabalho segundo aquilo que são os seus sentimentos. Sempre procurei as pessoas. Ainda hoje a pintura que faço é essa- se em determinada altura estava na moda, é um acontecimento sobre o qual não tenho culpa. Mas não me podem rotular. A certa altura houve aqui no Porto um acontecimento que deu brado: uma pintura foi executada no cinema Batalha e houve uma imposição que fez desaparecer o painel. Não foi foi retirado, mas pintado por cima. Era uma obra do Pomar. Esse painel, no fundo, era uma pintura que se baseava na festa do S. João do Porto, e certas pessoas, maldosamente, viram ali uma questão política.

O mestre estava cm Paris com uma bolsa, que foi suspensa.
Não foi a primeira vez que isso me aconteceu. Eu participei num concurso ao monumento ao Infante D. Henrique… aí senti no cerne o que era o salazarismo. A balsa era renovável, mas ao fim de três ou quarto meses disseram-me para regressar, sem eu saber porquê. Esta decisão marcou-me um bocado, a ponto de eu depois fazer uma exposição no CNI para mostrar o que eu tinha feito em Paris, para que não houvesse qualquer dúvida.

No monumento ao Infante D. Henrique ganharam o primeiro prémio, mas não executaram a obra.
Exactamente. Foi feito mais dentro do estilo das pessoas do regime.

Uma das suas facetas é a de ilustrador. Qual foi o livro que mais gostou de ilustrar?
Houve alguns que me deram gozo fazer. Um de Ilse Losa, A História do Cãozinho. Ela tem um espírito irónico, eu gostei de fazer isso; gostei também de fazer Vergílio Ferreira e Sophia. Agora não sou nem me considero um ilustrador, mas em Portugal há bons ilustradores.

Ultimamente…
Sim, nos últimos anos têm surgido bons ilustradores.

Quer destacar alguns nomes?
Não. Tinha de destacar três ou quarto. Mas eu acho que, genericamente, estamos bem nessa área. Neste aspecto estamos a mudar, e é positivo, até na importância que se está a dar à banda desenhada, que é uma coisa muito actuante…

Júlio Resende também fez banda desenhada.
Fiz, antes de saber que aquilo era banda desenhada. Era uma coisa semelhante, chamo-lhe antes história aos quadradinhos. Fiz outras coisas, trabalhei para o teatro, mas são coisas aparentemente marginais: uma pessoa que faz tudo não faz nada de novo, nunca é bom.

Não é o caso.
É é. Na ilustração as coisas poderiam sair melhor se eu tivesse talento e tempo para isso.

Falta de talento…
Tenho feito muita cerâmica, mas, por amor de Deus, não me chame ceramista.

A obra de Álvaro Cunhal cabe no Lugar do Desenho

Cinco anos depois, o Lugar do Desenho/Fundação Júlio Resende está a cumprir o objectivo inicial?
Penso que sim. E agora mais com esta perspectiva de podermos avançar numa área que, suponho, é complementar.

Qual é essa área?
Falamos da teoria, e parece-me que isso que se fez foi positivo. Agora estamos a avançar na segunda fase: a prática. Estamos a construir esse local.

Conhece os desenhos de Cunhal…
Se ele não fosse político, na arte também seria um artista contundente. Contundente no sentido de expressar aquilo que deve ser.

Lembra-se da polémica que Álvaro Cunhal manteve com José Régio sobre arte. Cunhal criticava o Régio de estar a olhar para o umbigo…
Acho que fica bem é não olhar, mas aquilo que dizemos tem a ver com o umbigo. A verdade é essa. A arte tem qualquer coisa que exige o seu suporte que está no outro.

Cunhal cabe no Lugar do Desenho?
Diria: por que não! Seria interessante falar-se sobre essa parte da obra de Álvaro Cunha.

Como faz os seus desenhos?
Sobre a emoção, debaixo da emoção. Faço desenhos durante as viagens.

No avião?
Às vezes faço. Tenho aqui um desenho que foi feito na Ilha de Santo Antão. No trajecto de uma ponta a outra, a paisagem era fabulosa, fiz o desenho com o carro em andamento. Gosto também de ouvir os pássaros e desenhar o seu canto.

Desenhos são o diário do mestre.
Olhe que é muito isso. Sabe o que eu fiz em Cabo Verde? Estive num penhasco e com fragmentos vulcânicos, lembrei-me de fazer uma paisagem com os pigmentos: triturei-os e depois estendi um pano de cinco por três metros e, com uma vassoura, fiz uma paisagem. Nunca pensei que fosse possível fazer isso com os pigmentos!

Qual é o canto de ave que mais gosta de desenhar?
O do melro, aparece muito no meu quintal. Os melros têm um perfil lindo, preto, aquela organização da cabecinha… são fantásticos!

Publicado originalmente no Diário de Notícias de 11 de novembro de 2002

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