AS labaredas tímidas por entre o amontoado de folhas e ramagem verde libertam golfadas de fumo branco, teremos consenso quanto ao que fazer a este final de tarde? Desligo a luz do candeeiro, o cair da noite antecipado de uma hora velha projecta no vidro da janela a minha própria imagem, o reflexo de um corpo que me foge à idade, o esbranquiçar das feições e o reflexo em mim daquilo que escrevo. A recursividade da vida vê-se em toda e qualquer superfície. A companhia do silêncio é apenas interrompida quando os cães, farejadores do que não vemos, ladram ao longe em intermitências caninas que só eles conhecem.

A noite, na verdade a gasta tarde de sábado, embrulha-se em mim e com ela todos os meus passos errantes no jardim ganham grafia, nem me vale o dia, por tantas palavras caberem em mim sem que as consiga escrever. O medo esconde-se na máscara, na bacteriana forma de vida que se vai acostumando a rostos sem expressão, ocultos agora numa nova prisão. De que nos vale o espectro visível de uma luz que não nos aquece? O que somos saber quando desconhecemos o que nos esquece?

Percorro novamente, na memória titubeante de algumas horas atrás, o irregular empedrado caminho onde alguém descasa a data de finados com os modernos confinados. O balde no antebraço com o detergente e esfregão, a vassoura ao ombro e o ramo de flores na outra mão, acompanham o corpo da mulher que se dirige ao cemitério para, deduzo, assear a campa de um familiar, numa caminhada erma, silenciosa. Por respeito, ao vê-la no cimo do caminho, tiro o som do rádio e abro o vidro para escutar o fumo doutra queimada. Resguardado pelo carro esboço um sorriso em forma de boa tarde (não há muitas diferenças nos trejeitos, mas gosto de pensar que as há), com a mão no volante levanto os dedos num aceno e sou cumprimentado com um aceno de cabeça e o embaciado por detrás dos óculos faz-me deduzir que falou e as pregas da máscara, ainda que ninguém a circunde, rodeia, fisicamente a distancie, repercutiram um “boa tarde!”.

A tímida chuva acomete-se com pudor nas lentes dos meus óculos e na capilarmente desprotegida cabeça, o vizinho levanta-me o braço em cumprimento e permito-me, fisicamente distante como mandam as leis, dois dedos de conversa com ele, tesoura de poda na mão, dois cachos viçosos bem fora do tempo, “São as uvas do podador!” diz-me a sorrir, enquanto com a cabeça alva aponta na direcção da chaminé do anexo, “Já acendi a lareira, vou aquecer a sopa e os pés e já tenho a sobremesa!” sorri enquanto ergue a mão e as apetitosas bagas de americano, luxuriantes.

Venho para aqui, a correr, ligo o computador e, às escuras, com as ainda tímidas labaredas no horizonte, ateio o fogo com duas pinhas abertas e secas no colo, dois episódios noviços de gente cansada, mais perto da vida que da sobrevivência. É mais do mundo a natureza, que a natureza do mundo neste viver de inocência.

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.

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