CAMPANHÃ é uma prova de orientação: para a superação do objetivo, conta tanto a velocidade com que consigo atingir os vários pontos (máquina de bilhetes que não aceita cartão MB, painel com informação das partidas, escadas, túnel, plataforma) como a destreza que aplico na decifração das pistas em tempo record. Por fim, é decisiva a capacidade de gerir a frustração. Afinal, o comboio que tinha perdido por um minuto era o alfa e não o meu urbano.

Suspiro de alívio, confirmo com o revisor despenteado que está na plataforma junto ao veículo que não é uma miragem e que o comboio para Aveiro é mesmo aquele. Escolho um lugar e viajo no fluxo de pensamentos. Entretenho-me com os meus porque não me consigo concentrar nos do livro “To the lighthouse” de Virgínia Woolf, talvez por me ter obrigado a ler em inglês e ainda precisar de parar a cada passo para traduzir vocabulário.  Entretenho-me com os meus.

Já tínhamos cruzado a ponte e aproximávamo-nos das praias, onde metade dos passageiros e a respetiva tralha veraneante sairia, quando começou o barulho, em crescendo.

– Tem algum documento para eu confirmar a sua identidade?

– Qual documento, qual quê? Tem aqui o passe. Já viu que está validado. Quer mais o quê?

– Vamos lá ver se nos entendemos. Como é que eu sei se o passe é seu? Preciso de ver um documento com fotografia.

– Tá maluco, não vou mostrar nada. Não tem nada que me pedir isso!

– Deve estar a gozar comigo… comigo não, com o meu trabalho.

– Eu estou a gozar consigo? Você é que está a implicar comigo só porque sou negro.

– Mostre-me um documento e não me enerve mais!

– Racista é o que você é! Está a fazer isto comigo porquê?

O tom de ameaça no ar lançou consternação entre os passageiros que assistiam à discussão. Se a maior parte, como eu, optava por dar espreitadelas rápidas à cena e depois fingia distrair-se com outras coisas, um homem sentado atrás do viajante exaltado não resistiu a atirar duas postas de pescada:

– É porque não tem documentos, está ilegal. Quem não deve não teme…

– Olha, tu queres apanhar no focinho? – berrou da frente o passageiro cada vez mais enervado.

– E o passe nem é teu de certeza – avançou o outro.

O revisor já estava a ligar para a polícia, o clima é mais tórrido que o sol do meio-dia de agosto. A marcha desacelera, aproximamo-nos de Valadares. Aparentemente, ninguém atendeu ainda a chamada de emergência. Num movimento rápido, o beligerante dá um leve encontrão ao revisor, cujas repas estão coladas ao couro cabeludo pelo suor.

– Deixa-me passar!

Aproxima-se da porta e sai a correr, assim que paramos. O revisor segue-o lentamente até à plataforma sem qualquer intenção de o intercetar ou de lhe complicar a vida, apenas com o alívio de se ter livrado de um molho de problemas. Já uma mulher vaticinava ao meu lado:

– Havia de ser comigo! Não o deixava sair, ia direitinho para a esquadra.

Todo um coro grego a secunda:

– Para a prisão! Ilegal! Mostrengo que pões à prova os nosso brandos costumes! Nem sequer sabes cumprir as normas mais básicas de uma vivência em sociedade!

Rapidamente o homem anteriormente ameaçado de porrada salta para a boca de cena, assumindo todo o protagonismo de vítima ressabiada, não tanto por este incidente, mas pela sina de ter nascido em Angola, conhecer muito bem essa gente, não ser racista, ter estado na guerra colonial e topá-los de ginjeira.

O revisor volta para terminar a sua inspeção e logo as personagens secundárias lhe dizem que devia ter tido tomates e agir com têmpera para que indivíduos como este, que comem à nossa custa e cospem no prato, não andem à solta.

Ele limpa o suor com um lenço de papel, lança um ou outro olhar na direção de onde vem a invetiva, mas goza do direito de não resposta, ausentando-se logo que pôde.

Quanto mais olho para as páginas do livro e tento ler, mais navego num mar de letras sem sentido. E não é só o inglês. Fixo a placidez pastel das extensas praias de Espinho serpenteadas pelo passadiço pouco percorrido àquela hora abrasadora. E as vozes a matraquear à minha volta, os donos das certezas a vomitar convicções e preconceitos que tinham acabado de garantir não serem deles.

Espinho é um túnel muito longo, que eu atravesso com andar de bêbada para procurar um lugar distante do palco onde a tragédia continua a ser encenada. Sei que o anfiteatro tem uma acústica que permite que o som chegue a qualquer ponto, ainda assim tenho de tentar. E consigo de facto abstrair-me. Leio, espreito o telemóvel, confirmo a hora da reunião que terei nessa tarde.

Em Ovar, levanta-se uma família bem-disposta e apercebo-me de novo reboliço, não pela elevação do tom de voz, mas pela urgência com que falavam, que era proporcional à aproximação ao seu destino.

– Vocês não vão sair em Ovar? – perguntaram a duas crianças.

– Sim.

– Então e a vossa mãe está a dormir?

– Minha senhora! Minha senhora. Acorde! Não vai sair em Ovar?

Não ouvi a resposta, mas apercebi-me de movimentação de sacos de plástico e de lona.

– Vamos lá. Vamos lá – ordenou depois às crianças, já com a inflexão de comando. E ainda acrescentou:

– Obrigada, senhores!

As ancas da mãe negra passaram à minha frente cambaleantes. Vestia um vestido com folhos muito coloridos e na cabeça tinha um turbante do mesmo tecido. As mãos repartiam-se entre a bagagem e as crianças, de modo que na travagem final que antecedeu a abertura de portas foi projetada com força, não chegando a cair.

To the lighthouse!

Aveiro cheira a maresia e tem uma mulher que me oferece uma gargalhada espanta-espíritos na caixa do supermercado porque eu interpretei mal o seu suspiro.

– Não faz mal se não tem um cêntimo de troco – abonei.

– Não é isso, menina. Só estou a pensar que está chegando a minha hora de almoço – e lança o riso como incenso, contraindo os músculos do rosto moreno e ponteado de espinhas. O cabelo crespo afastado por uma fita balança com ela.

Já vejo as faixas alvas e magentas do farol.

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