O HOMEM mais feliz do mundo cultiva pequenas hortas nas horas vagas, mas de vez em quando, uma nuvem negra que aprece no céu da sua vida, tolda-lhe e a visão e a apertar-lhe o coração por instantes

São as recordações do passado que vai longe a lembrar ao Valdemar que nem tudo o que luz é oiro.

Olha inquieto horizonte que tem pela frente, passa a mão direita nos cabelos castanhos ao mesmo tempo que na mão esquerda, segura o boné da Carris.

Deixou o trabalho na criva e a empresa mineira há alguns anos por se recusar a exercer atividade nas profundezas do chão. Desgarrou-se para a cidade do Porto à procura de um emprego mais digno e consegui chegar a condutor de elétricos.

Mais liberto e feliz, era vê-lo a passar na praça da Batalha de boné à trouxa – moxa a carregar com o pé no pedal da campainha da máquina desbravando caminho ao trem que dominava os transportes públicos na cidade invicta.

Há um brilho de mistério naqueles olhos pardos. Na sua mente, qual potente projector cinematográfico, passam rápidas, dolorosas e em catadupa, as imagens de outrora como se todo o passado tivesse de ser revisto nesse preciso instante.

Quase por instinto, puxa do bolso o maço de cigarros três – vintes e retira um com os lábios que beijam a embalagem enrugada. Uma nuvem de fumo envolve-lhe a cara e as memórias surgem-lhe muito mais vivas do que nunca.

– Foge Pacheco!

O angustiado grito, rebenta no seu cérebro como se tudo tivesse acontecido nesse fatal momento.

Este céu de chumbo que cobre a natureza, estala-lhe nos olhos, cinzento e ameaçador. É um firmamento sem luz que prenuncia tragédias, exactamente igual ao daquela tarde de Setembro de há muitos anos atrás.

– Foge Pacheco

O mesmo bramido a ecoar na mente, a mesma voz, a mesma impotência, a mesma dor e o mesmo desespero.

As vagonetas saem carregadas de carvão da boca escancarada da mina numa corrida louca, surgem como cavalos com o freio nos dentes, avançando descontrolada nos carris. O Pacheco devia de engatá-las umas às outras, prendê-las na argola de baixo formando um comboio facilitando assim  a descarga do carvão nas lavarias.

– Foge Pacheco!

O grito do Valdemar quebrou a quietude da tarde outonal, mas não evitou a desgraça. As peças de ferro avançaram inclementes sobre aqueles vinte e um ano de vida, sobre um monte de ilusões e de sonhos albergados no peito do rapaz, desde Penha Longa sua terra natal.

O Valdemar virou a cara na hora do desastre iminente e quando voltou a olhar, viu apenas o corpo esmagada do seu amigo num último estremecimento.

Passaram os anos, no entanto, parece haver lágrimas nos olhos do condutor de elétricos. Mas não, provavelmente é o fumo do cigarro três -vintes a perturbar-lhe as vistas.

Sacode a cabeça num gesto inquieto a tentar afastar tão sinistros pensamentos, assenta o boné por cima dos cabelos e desaparece na esquina da venda do Viana.

Vai aos Estercos? Não se sabe, poderá ir a qualquer um dos sítios conhecidos, mas o mais certo é não ir a lugar nenhum.

Se não fosse esse turbulento passado, talvez sentisse vontade de ir à festa de Santa Eufémia a Paraíso de Castelo de Paiva, hoje são dezasseis de Setembro, dia do grande arraial que junta milhares de pessoas em redor da capela, alguns ajoelhados a cumprir promessas, outros a empanturrar-se de bifes regados com verde tinto nas tendas de comes e bebes, muitos a divertir-se com danças folclóricas na eira e terrenos dos viveiros do José  Sampaio, mas quem é que deseja festas do meio de tanta tristeza?

Decidido, segue o caminho da serra da Boneca. No alto do Vieiro volta-se para trás e repara lá para longe, na curva do horizonte onde majestoso o rio Douro lhe escapa das vistas para beijar a povoação de Melres, permite que o seu olhar se prenda nas ribanceiras de Gemunde, terra esburacada até aos infinitos por homens valentes e mais uma vez revive o momento da terrível catástrofe que lhe enlutou o coração.

Não há forma de esquecer o passado. Nada pode limpar a brancura da toalha das nossas vidas, o diário de bordo da embarcação de cada um dos seres vivos. Como num barco que cruza todos os mares, tudo ali fica registado a fazer sorrir ou a chorar consoante a página que, sem agente o desejar e inesperadamente, se abre em determinados momentos de contemplação a lembrar-nos a efémera condição de mortais, personagens bizarras de uma peça teatral que termina sempre da mesma maneira: nenhum dos artistas sobrevive ao maior ou menor êxito da representação e vão sendo substituídos de forma automática no decorrer de cada acto. Só o palco, este pedaço de mundo onde decorrem todas as cenas e as figuras se movimentam aleatoriamente, vai sobrevivendo de forma que julgámos perpétua.

Anoitece em Rio Mau, o rio Douro recolhe-se um pouco mais no leito e serenamente prepara-se para adormecer.

Dorme rio dos meus sonhos, que eu, mesmo sendo pequenino, velarei por ti.

Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do DouroDouro Inteiro;  Douro LindoA Ninfa do DouroPalavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook;  Amanhecer; Barcos de PapelCasa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo.

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