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As vacas

As vacas

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A VACA CEGA

Tropeçando num e noutro tronco,
caminhando a esmo para a fonte,
vem a vaca sozinha. É cega.
De uma pedrada atirada com força
O vaqueiro vazou-lhe um olho, e o outro
ficou como esse; a vaca é cega.
À fonte vem beber como soía,
sem os passos firmes de outras vezes,
nem com as companheiras, vem sozinha.
Suas companheiras por barrancos e azinhagas,
pelo silêncio dos prados, nas ribeiras
fazem soar o chocalho enquanto pascem
fresca erva ao acaso… Ela cairia.
Dá com a cabeça na pia já gasta
e recua assustada… Mas insiste,
abaixa a cabeça e bebe lentamente.
Pouco, sem muita sede. Ergue depois
ao céu, enorme, a cabeça com os cornos,
num gesto grande e trágico; pestaneja
sobre as mortas pupilas e regressa,
vacilando, pelos carreiros que não esquece,
brandindo languidamente a longa cauda.

por Joan Maragall (1860-1911) traduzido por José Bento

*

VACAS

são na maioria silenciosas,
ombros afiados,
férteis,
os cílios húmidos,
de cor ruça,
ou preta,
ou preta e branca,
ou ruivas,
(brancas com orelhas vermelhas
aquelas que vêm do
submundo),
maternais,
de passadas lentas,
vegetarianas,
cornudas
e doces,
e todas as mulheres
temem
que lhes chamem
vacas.

por Martina Evans traduzido por Luís Filipe Parrado in A única maneira de esquecer a beleza, Língua Morta, novembro 2022, página 300

*

A VACA existe apenas como metáfora. O seres designados por tal nome, que se oferecem à ilusão dos sentidos, devem a sua existência à nossa necessidade irremediável de consolo.

José Alberto Oliveira in Bestiário, Assírio & Alvim, março 2004, página 524

*

ESTRELA

Estrela ontem morta de parto,
a mais paciente e pródiga, tanto
que esperou por deixar um filho reproduzindo
a malha branca no negrume da cabeça,
claro sinal de estrela, nome merecido.

Não passarei mais a mão
por teus quadris, por essa pele,
um brocado antiquíssimo hindu,
com o afecto que um homem deve ter
por aquilo que transcende em dádiva
irrestrita, em bondade e silêncio.

Teu filho procura beber nas minhas mãos,
lambe, investe-me tocando com os cornos
ainda dentro de si, germinantes.
Amo que procure em mim
o seu instinto – essa coisa sagrada
dos homens – o teu úbere, os pequenos tetos
(apenas eles não formosos) que veia
poderosa, como pulso, alimentava.

Não te ouvirei mais ruminar,
tua forma de prece, olhando-me, grata,
distante, aquecendo-me no Inverno,
fazendo-me sonhar em minha mãe,
como camponês sua fortuna, temendo que morresses.

in A luz fraterna, poesia reunida [Felicidade da pintura], Assírio & Alvim, setembro 2009, página 168

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