A morte pode chamar-se César apunhalado e exangue,
mas é também o amável faisão decorativo e degolado que morreu para presidir à promissora alegria desta noite. É o cão municipal babando a sua estricnina, que agoniza na rua rodeado de rapazes. É Sócrates rodeado de discípulos. É Shelley exânime deitado sobre a areia molhada pela última onda fugitiva. É o mamute arquimilenário imóvel e exposto em sua vitrine siberiana de gelo imemorial. Comemos morte todos os dias e a morte rói-nos todas as noites. Os poetas, os filósofos gritam: “Morte, morte” – a deles. O boi desamparado que se esvai em torrentes de sangue com o braço do magarefe revolvendo-lhe o peito, e uma dor mais forte que todas as anginas, não é morte também? Talvez a rês nada saiba, mas conheces tu a crispação de raiva e de impotência que há numa ementa? Tiremos a limpo as nossas contas. Repartamos a morte em toda a sua extensão: do condor à abelha, do veado perseguido e assassinado à criança afogada num tanque, do poeta e do filósofo que gritam: “Morte, morte” (à deles) aos que morrem sem saber o que lhes acontece, o que se passa, o que vai suceder-lhes, e nem perguntam se isso é morte, realmente, se é assim que se morre.por Nicolás Guillén in Antologia poética, selecção, tradução e notas de Albano Martins, Campo das Letras, novembro de 2002, página 81