­­­­– Ela está sozinha.

Foi a primeira frase da matriarca, ainda antes do proverbial bom dia, com que me deparei na sorumbática manhã de sábado, talhada pelos latires ansiosos do canídeo. O gato, senhor de si mesmo, chegou, viu e venceu, marcando o território, neste caso o celofane transparente que plastifica a protecção singela da ilharga do roupeiro. O cão, senhor de outros, fareja, segue-lhe os passos e as secreções, urinando com mais veemência. Ausculto o diálogo monologado da senhora, sexagenária tardia e mãe da cliente, onde a labuta universal de uma vida voltada à adversidade com um sorriso valia o epíteto de profissão. Aqui há os sardinheiros, os pedreiros, os charés, os presuntos e outros que esqueço agora, na sombria tarde de domingo, onde o ecrã do computador aquece o leito sobre mim mesmo, na camisola de lã cingida ao que me prende à vida (a qual me orgulho saber não existir). Os nomes de nada valem, embora se me colem ao palato como o copo afundado num Porto licoroso, rubi, cujo teor me confundirá, como sempre, nas vozes ausentes que se colam aos meus sentidos.

Depois de estacionar e descarregar a carga e a mim mesmo, estaciono e percorro a rampa empedrado que, resvalando-me, me levaria ao Paiva, não fosse a matinal sabedoria do sábado acautelando-me os passos. Duas catraias vestidas num tardio corso perguntam-me o que faço por entre duas mordidas num seco molete e um esbracejar duma varinha de condão, com as asas esverdeadas e esgar sorriso ladeado a batom vermelho infantil. As paredes multicoloridas dum interior paupérrimo, o quarto aberto numa tijoleira acastanhada parecem imitar o presépio proverbial de uma adolescência votada ao abandono paterno. Os balcões das tabernas serão sempre mais inebriantes que a canalhada ao colo numa tarde inverneira à frente do fogão de lenha. Mas muito menos prazerosas.

Entre os haveres sobre o roupeiro antigo, encontro uma empoeirada fotografia de casamento que é rasgada no imediato e à minha frente. Um sorriso escorre na face cuja ruga amortece a lágrima azeda de uma memória perdida “Tivesse eu partido uma perna e aberto os olhos, mas no meio disto tudo, sempre me deixou os meus tesouros” e olha para as pequenas fotografias de dois mancebos louros e sorridentes, que lhe levam o parco salário e enchem o coração. “Vou ver agora o jogo de um, faço de mãe e pai” e despede-se quase com uma desculpa por ser assim, simples, humilhada por um gentio, acomodando um saco de cereais de chocolate e passando a mão na ombreira da porta da garagem aproveitada para habitação. Um lar é-o onde nos fazemos lugar. E amar.

A mãe vê-a sair, conta-nos pormenores privados que lhe embolavam a garganta e a alma, pede-nos para medirmos o balcão inexistente da cozinha. Será um presente para a filha. Prometo-me a mim mesmo que se algum dia me for facultado mais do que preciso para o próprio dia, levarei àquela casa a fartura cuja míngua lhes faz a vida dura.

Terminado o trabalho, a mãe, avó, amiga, cliente e peixeira, despende-se com a ternura de quem pelos seus zela:

– Ela está sozinha. Mas nós estamos com ela.

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo”.

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