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Álvaro Domingues: “Só concebo a Universidade como uma esfera de liberdade”

Álvaro Domingues: “Só concebo a Universidade como uma esfera de liberdade”

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GEÓGRAFO e professor universitário português, Professor da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (desde 2000), Investigador no CEAU- Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da FAUP, Antigo Estudante e Professor de Geografia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

– Como é que teve origem e se tem vindo a desenvolver a sua ligação à Universidade do Porto? Que principais momentos guarda da sua experiência enquanto estudante, professor e investigador da U.Porto?

Como quase todos, a ligação à U.PORTO começou enquanto aluno do Curso de Geografia da FLUP. Ir para a Universidade e ir viver para o Porto, coincidiam na minha expectativa de então enquanto jovem estudante. O Porto (e não Lisboa, curiosamente, que para mim era a “corte” e os seus grupos e pouco mais…) era a minha geografia mais próxima do que achava ser a “urbanidade” enquanto experiência de cosmopolitismo e experiência de sociabilidade; a outra era Paris, o lugar de residência de quase todos os meus vizinhos de Melgaço e a própria imagem da cidade-mundo.

Da vida de estudante guardo o ambiente fantástico da faculdade, a camaradagem entre colegas e um estilo de professor bastante informal e muito próximo do aluno – as visitas de estudos ou os acampamentos eram experiências únicas de geógrafos andarilhos e pessoas interessadas pelas diversas cartografias do mundo e da gente. O Coral de Letras foi outra experiência intensa. O profissionalismo do maestro Luís Borges Coelho exigia rigor e trabalho mas o CLUP foi a descoberta da música, da prática coral enquanto “cantar juntos” e sentir o grupo, as viagens, os concertos, os prémios, as festas… era a tribo.

Como professor, tive a sorte de começar a dar aulas na minha faculdade logo depois da conclusão do curso. Era incrível! Ser professor onde meses antes se tinha sido aluno e se tinha aquele espírito de querer mudar tudo, ser inovador, desbravar outros caminhos para a Geografia. É claro que o bom ambiente existente com os meus ex-professores ajudou a perceber que ruptura e continuidade se misturavam sem traumas ou impedimentos. Encontrei um espaço de liberdade absoluta em matéria de organização de um programa, de uma estratégia pedagógica e de um modo de estar na escola. A investigação surgiu ao mesmo tempo (tínhamos a experiência dos “trabalhos práticos” no curso) e com as formalizações dos mestrados ou provas públicas. A escola sempre me facilitou (trocas de horários, distribuição de serviço docente, etc.) as condições para a investigação e a logística necessária para me possibilitar saídas e presenças em congressos e seminários. Desde cedo também, tive a sorte de trabalhar “fora” da FLUP, na Operação Integrada de Desenvolvimento do Vale do Ave (coordenada pela profª. Elisa Ferreira) ou na Câmara de Guimarães (com o arqº Nuno Portas), ou na Quaternaire Portugal, uma empresas privada de assessoria e serviços na área do desenvolvimento regional e local.

Até hoje, e desde 2000 na Faculdade de Arquitectura, considero fundamental esta ligação para fora do mundo académico e a possibilidade de resolver isso sem grandes obstáculos burocráticos e, no meu caso, sem sequer estar inserido num centro de investigação ao estilo anglo-saxónico. Tudo tem sido trajectórias bastante pessoais e de geometria variável em termos institucionais, fora e dentro da U.PORTO, em Portugal ou algures. Podem-se gerir estratégias d e investigação “por projectos” e, como eu gosto, variando os objectos de estudo, os contextos, os campos científicos e as instituições.

– Qual a importância da U.Porto no seu percurso profissional e que modo tem ido de encontro às suas expectativas?

A U.PORTO é a minha casa. Não me deixo deslumbrar facilmente com a internacionalização pela internacionalização. O conhecimento científico é universal, já se sabe, mas há muitas maneiras de garantir a fluidez e a abertura face à informação e à inovação. Na Geografia Humana, de resto, nem tudo é universal ou universalizante; há as especificidades do país e da cultura, do território e da paisagem. No contexto da União Europeia, a U.PORTO facilita-nos bastante a logística das trocas e da circulação no meio académico. Fora da UE, a experiência com o Brasil também tem sido muito boa, coisa que ainda não acontece com os PALOP ou com Macau.

Há hoje um certo fascínio anglo-saxónico mas gostaria mais de aprofundar o universo da cultura portuguesa e, no campo das ciências sociais, com a França onde existe uma imensa comunidade de origem portuguesa. Penso também que se deveria explorar melhor uma plataforma Ibérica-América Latina (incluindo a Galiza, claro). É que às vezes confunde-se o “universal” com o que é universalizado pelas instituições dominantes dos EUA e do mundo anglo-saxónico (o que não é a mesma coisa, pelo menos para as Ciências Sociais, as Artes e as Humanidades). Por mim, uma das manifestações mais interessantes da globalização são as suas expressões localizadas. A globalização não é inteligível a partir da estratosfera, mas a partir do mosaico de tensões e combinações aos níveis nacionais ou locais. A globalização é um transgénico que assume diferentes realidades quando as tendências ditas globais se cruzam com as outras. A U.PORTO é do Porto, portanto, e deve continuar a ser.

– Como avalia o papel desempenhado pela Universidade no seio da comunidade (cidade, região, país) e de que modo ele se poderá projectar para o futuro, com especial enfoque no campo da investigação e da produção de conhecimento e inovação?

Num país macrocéfalo (os meus colegas de Lisboa, com honrosas excepções, ainda dizem que vão ao “Norte” ou à “Província”…, é lamentável), as identidades regionais e locais encontram mais espaço de expressão pela positiva e pela negativa. Essa situação é favorável à construção de parcerias com a Universidade e a U.PORTO tem muitas e intensas experiências disso.

Na minha área sinto isso muito claramente; não têm faltado oportunidades de produzir conhecimento com os mais diversos parceiros – empresas, instituições, municípios e suas associações, fundações, escolas, jornais, televisão, etc. -, desde os mais “invisíveis”,  aos mais visíveis como Serralves, Casa da Música, CCDR.n., Ordem dos Arquitectos, etc.  Ao nível nacional isso é extensível ao governo e à Administração Pública, a outras universidades, a instituições como a Fundação Calouste Gulbenkian e outras que investem na produção e divulgação do conhecimento e da investigação.

Creio que a visibilidade da U.PORTO no mundo da tecnologia e das empresas é bastante boa. Na arquitectura, também. Não penso o mesmo do lado das Humanidades e das Artes. Numa sociedade em crise de crenças e ideologias, faltam lugares de debate sobre o pensamento, sobre a produção artística e as suas múltiplas expressões de interrogar a sociedade, as suas glórias e angústias. Em matéria de “território”, o Norte é um verdadeiro laboratório de paisagens transgénicas. Gostava que a consciência do território (como a do ambiente, agora tão visível) fosse mais divulgada e discutida. O território é a nossa casa comum e não apenas o que se vê escoar pelo retrovisor do carro, nos mapas e da nossa janela. O futuro (que é uma dimensão do tempo e um planeta desconhecido) só se pode pensar com o território que não é apenas o palco onde se desenrolam os dramas e comédias da história. O território (a forma como é representado e vivido) é uma das melhores formas de entender a síntese e a complexidade da sociedade. Como o futuro passa necessariamente por aí, aposte-se no conhecimento e na divulgação sobre o território porque isso escasseia a qualquer dia só sabemos de centros históricos e aldeias típicas ou conversas vagas sobre sustentabilidade e outras palavras que de tanto gastas se reduziram a pura fonética.

– Que caminho deverá ser percorrido para afirmar cada vez mais a Universidade no contexto regional, nacional e internacional? Como prevê o papel de uma Universidade do Porto daqui a 100 anos?

É difícil fazer futurologia. No tempo longo, a Universidade manteve a sua centralidade na produção do pensamento, da tecnologia, das ideias. Também teve as suas obscuridades quando era apenas a institucionalização de poderes mais ou menos opressores. Se a Aldeia Global se transformar em Selva Global, a Universidade tem que voltar a resguardar-se mais, abandonando parte deste fascínio liberal pela “utilidade” da investigação e pela produtividade dos papers alimentadores de uma voragem electrónica que se auto-alimenta sem que se perceba muito bem com que regras. Talvez seja preciso produzir algum conhecimento inútil e radical, ou seremos emaranhados na lógica universal do dinheiro que faz dinheiro e geridos por alguma instituição de “rating” global que dirá quem faz o quê e com quê. Só concebo a Universidade como uma esfera de liberdade e de responsabilidade cívica, de constante vigilância entre ética e conhecimento científico, de fertilização cruzada entre esferas distintas de organização dos saberes e das práticas sociais. Por muito que a sopa global vá inundando o globo, a U.PORTO deverá sempre ser do Porto. É capaz de ser defeito profissional de geógrafo, mas interessa-me o lugar mesmo que seja apenas um site (com muitos links…) no tal hipertexto global. Independentemente da universalidade do saber, interessa-me saber como é que as instituições e as pessoas que o produzem mudam as sociedades e os lugares onde vivem.

– Mensagem alusiva aos 100 anos da Universidade do Porto

Quando Yves Klein (1928-1962) reduziu a arte a um azul intenso e monocromático, descobriu o fascínio do conhecimento: de tão saturado ficou vazio e enigmático. Vivemos uma época que só inventam dispositivos de aceleração sem recuo suficiente para saber quanto de descarrilamento imprevisto existe na velocidade. Vivemos no fascínio permanente pela inovação, pela criatividade, pela informação, pela ficção…, mas corremos constantemente o risco de nos perdermos por não haver GPS que nos guie nessa floresta encantada. O conhecimento vai-se ramificando até ao infinito, ao ponto de cada um não saber muito bem o que é que faz, sabe ou pensa o outro ali ao lado. Confunde-se a sociabilidade Facebook com a riqueza de outras amizades menos efémeras e anónimas. Troca-se a demanda do conhecimento do todo com o poço sem fundo da Wikipedia onde tudo se mistura desde a pureza ao embuste. Pensamos pouco porque nos entretemos muito entre os tempos em que mergulhamos nos nossos pequenos mundos.

Já se sabe que a Universidade não é a Torre de Marfim nem o ermitério dos sábios, mas não temos a noção clara do quanto do universo existe na universidade e qual é o seu lugar quando já há muito perdeu o monopólio da legitimação do conhecimento e da sua produção e distribuição.

Talvez não fosse mau perder algum tempo reflectindo, como diria António Damásio, sobre a “consciência de si” para melhor conhecer os caminhos a percorrer na relação com as outras instituições da sociedade também elas instáveis e mutantes. Cem anos (que não foram de solidão) são suficientes para perceber que o mundo é composto de mudança – disse Camões -, e “não se muda já como soía”. É esse o desafio.

in http://centenario.up.pt/

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