Se me fosse possível retroceder no tempo até à infância ou mesmo à juventude, mudaria meticulosamente partes do somatório das estórias que vivi e de muitas outras em que participei como inocente observador dos acontecimentos, que mais não eram do que representações teatrais do quotidiano das pessoas, cenas que decorriam na grandeza do palco da minha existência, anfiteatro de descomunais dimensões onde tudo e todos se movimentavam. Muitas delas comédias fantásticas que faziam sorrir, outras dramas que lembravam tragédias passadas e que já faziam sangrar o meu coração pequenino. Mas não posso mudar um único segundo, nem eu nem nenhum outro ser habitante deste planeta, porque estou preso a esta época, a um outro mundo, os dois sem comparação possível entre si, mas como eu vítimas da dinâmica imprimida pelo progresso que num relativo espaço de tempo, quase tudo modificou.
Às vezes aleatoriamente debruço-me sobre a leitura de um dos meus livros, que são muito mais do que simples objectos de decoração de estante, mas sim repositórios da palavra escrita que gera encontros entre quem escreve e quem lê na espectativa de encontrar naquelas solitárias páginas, uma memória de um tempo que terminou, ou uma simples referência ao nome de alguém que lhes foi muito querido e que eu fiz regressar à vida através da minha escrita. Pela única e derradeira vez voltaram a vislumbrar na fugaz fragilidade das suas memórias após uma leitura atenta de um livro, que nasceu para ser partilhado e é simultaneamente um embaixador que proporciona amigáveis encontros entre duas pessoas que se desconheciam até então.
Algumas vezes, devido à rapidez com que a mente processa as lembranças da minha infância, esqueço o bater do coração de muitos outros que foram meus companheiros dessa longínqua parte da nossa passagem pelo Mundo. Testemunhos silenciosos das angústias e desesperos das suas vidas, da fome e da dor que os atormentou ao longo dos anos de servidão. Todavia e a pesar da minha tenra idade, pressentia as lágrimas muito antes de elas brotarem dos olhos das mulheres da minha terra. Sim mulheres a quem todos devemos alguma coisa por terem sido mães e o suporte mais firme das relações humanas. O equilíbrio que distribuiu os mais puros e genuínos dos afectos.
Os lenços de merino que lhes cobriam os cabelos, os aventais de chita com que tentavam inutilmente sufocar o sofrimento ora cobrindo-lhes os rostos, ora impedindo que se lhes vissem os olhos prestes a sangrar, são muito mais que memórias de um passado sem rosto, são pérolas que ainda hoje enfeitam os peitos dos seus precedentes nos dias de festividades e romarias.
E havia um rio a passar por entre aquela miséria toda. Um rio de lágrimas que corria para o mar da Cidade do Porto. Esse rio foi a origem da minha florida infância, porque um rio é sempre um jardim maravilhoso quando enfeitado com barcos Valboeiros, Rabões e Rabelos. Esquadras de paz todos os dias a boiar nos meus olhos de criança.
O rio Douro foi o laço mais forte que me prendeu ao Mundo, da infância tão robusto que ainda hoje vivemos os dois dentro desse abraço do tamanho de uma vida.
Não sei por quem os sinos dobram neste instante em que escrevo, talvez por um amigo muito querido da minha juventude, ou por uma outra pessoa que já repousa em paz numa das páginas de um dos livros que a minha emocionada e trémula mão escreveu.
Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro; Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras – Conversas com um Rio; Fado Falado – Crónicas do Facebook; Amanhecer; Barcos de Papel; Casa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo.