A RUA exibe o mesmo tom juvenil de sempre, na ausente sombra dos eucaliptos, decepados num coto estirado em súplica ao céu. As árvores choram, não pela dor, mas na nossa manifesta falta de amor. Sob um empedrado caminho que traz comodidade, sem conforto, jazem estirpes que gretaram paredes e muros, na profunda harmonia entre a natureza e o impropério, senhoras do seu império.
Gatinhava ao som dos adultos, os joelhos sujos na limpeza de uma diversão pirralha, berlindes, caricas, carrinhos nas garagens construídas nas raízes que connosco brincavam, os carreiros de pedrinhas e meia dúzia de criancinhas na protecção atenta de um Deus que a si começara já a levar alguns seus. Quando, inusitadamente, o estio trazia uma tarde de chuva, sem secar o que, no tanque, se tinha roçado, torcido a água e sabão rosa nas finas mãos grossas maternais que chegam agora à idade de quase serem saudade, íamos no cuidado inexistente para o caminho lodaçal, fechando represas com ramos e terra, quais castores pueris na represa da juventude. E quando a noite se aconchegava ao torpor do cansaço, havia forças para esperar pelos pais ao fundo da rua e, com eles, fazermos a subida, nesta que é a travessa da avenida da minha vida.
Crescemos e fronteiras erguem-se limitando o acesso ao monte que era o palco das nossas brincadeiras, um terreno mágico que se metamorfoseava a cada vez que entrávamos, estádio de futebol onde jogávamos ao lado do Zé Beto, Bento ou Damas, grand canyon palco de tiroteios amigáveis e honestos, onde bastava um – Tau, acertei-te! – e a sinceridade (um fedelho lá sabe o que é maldade?) obrigava a sentar no chão, deitar sobre o musgo seco, ver as formigas abstraídas em afã alheia às tropelias da canalha, enquanto a troada de pistolas e carabinas invisíveis continuava, ecoando na quente tarde e na paciência de alguma mãe que, aleatoriamente, pendurava no estendal, entre dois pinheiros simpáticos, a parca indumentária que nos vestia, dignamente e em quantidade mais do que suficiente, sem ostentar logótipos que nunca acrescentaram nada ao que nos vestia. Eramos felizes e nenhum de nós o sabia.
Percorro a rua passadas longas Primaveras. As matriarcas ainda me recebem no sorriso que me viu crescer para adulto, mas ainda as admiro como petiz: – Pareces mesmo o Sr. Dinis! – ouço em tom força e labuta de mãe que nunca cede a uma luta. Portas entreabertas, passos delicados e cuidados, maleitas que se acomodam ao passar do tempo no corpo, um ou outro fantasma que me visita e que todos pensam estar morto. As fotografias esverdeadas de sorrisos multicolores e tímidos, cheios de esperança, são ainda o que me veste com indumentária e olhar de criança. As louças já não tilintam, os camiões verdes carregados de areia e brita deixaram de terramotear o mundo infantil, as portas e muros diminuíram na proporção do meu crescimento e, creio, talvez seja este o meu maior contentamento. As memórias, tal como eu, nunca ambicionaram ser mais do que vida sem nada mais expectar, além de serem elas próprias, a brincar.
A toponímia desta existência tem o nome de todos que comigo cresceram e viveram. Nunca dali saí e, contudo, sinto que já lá não mora aquele que me cresceu. Talvez seja eu, agora, coto decepado estirado e esquecido da minha ligação com a casa, com o céu.
Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo”.