No olhar embaçado do meu pai encontro o reflexo das sanzalas, picadas, regatos coloridos de peixes futuros e uma terra que paria abundância com a facilidade dos sonhos mancebos em terras distantes, separadas por um oceano nauseado em porões defecados por animais e o medo do desconhecido pelos umbrais.

O empoeirado estacionamento separado do restaurante onde seria o convívio avivava a ansiedade. A viagem sulcada em toada serena amanhecia junto com o dia de sobriedade amena. Subimos a escadaria do moinho, sorriem vigorosamente do fundo de uma vida envelhecida, rodeando uma távola circular, cavaleiros do ultramar. Nas minhas feições reconhecem os traços de quem me cedeu a genética, confundem-me com o Velhinho, sorrio da situação, bebo um café rápido e chamo a restante comitiva familiar, em terra alheia, amigos estranhos transformam-na em lar.

Com a cavalaria a caminho, cumprimento quem do nada me chama, arrebatando memórias tumefactas, olhares brilhantes de quem por dentro ainda navega num tumultuoso mar. Os velhos combatentes retornam à camaradagem fantasmagórica de uma juventude agreste, rude, escamoteada nas lapelas de quem medalhas urdiu, à custa dos filhos que a pátria pariu.

O vigor dos apertos de mão, que retribuo com um firme apertar do ombro, transformam-me num enferrujado unimog, cansado, quando me exibe a fotografia tremendo na mão cuja vida encardiu. Quase soçobro na narração tremida, desnudado no olhar distante e turvado, de quem foi moço e voltou soldado, em juventude amparada na bengala de madeira, retorcida, como lhe fez, soluça, a própria vida.

Os apelidos sucedem-se e a totalidade de uma nação cabe em todas as medalhas polidas com que tentam sarar as feridas. Um Jonas ou Jóia sorri ao contar sobre o verdadeiro Joina e o nome trocado desde sempre. Há quem nasça do silêncio. E há o Lemos, que foi do futebol, da caça e agora da pesca, o Cardoso, o Martins e todos os nomes do mundo. Partiram para nunca mais voltar, ainda que o tenham feito e, pasmemo-nos, se saboreie a primeira regueifa com manteiga apenas depois de vir de Angola, ido com um cabelo branco, regressado de cabeça alva.

Os familiares, ramificações de uma existência que o destino plantou aqui e ali, convivem o que sabem e todos, sem excepção, olham com benevolência, carinho e uma ponta de emoção, os septuagenários militares em conversas intimistas nas feições de garotos que assomam quando se reúnem, cochicham ao ouvido e se riem na meninice roubada e que para muitos morreu no além-mar.

O Antunes faz 75 anos, poderiam ser 20, mas antes da celebração o minuto de silêncio que se prolonga nas recordações a preto e branco. Os partidos vivos, a cores, do lado de lá da trincheira apontam afectuosamente os próximos a partirem.

Terminado o minuto eternizado, vão embora de braço dado os soldados. olho húmido batem continência, em paz, na suprema inocência.

Paz. O quão difícil poderá ser, rapaz?

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo”.

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1921
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