A alma vai-se tendo.
Ninguém a tem constantemente
nem para sempre.
Dia após dia,
ano após ano,
pode passar-se sem ela.
Às vezes,
é nos arroubos e medos da infância
que se instala por mais tempo.
Outras vezes, é no espanto
perante a nossa velhice.
Raramente nos assiste
nas tarefas maçadoras,
como colocar uns móveis,
carregar malas
ou calcorrear uma estrada com as botas apertadas.
Enquanto se preenche um inquérito,
ou se pica a carne,
regra geral, está de folga.
Em mil conversa nossas,
participa numa,
e não necessariamente,
pois prefere o silêncio.
Quando o corpo nos começa a doer e a doer,
ela abandona furtivamente o seu posto.
É caprichosa:
com desagrado nos vê na multidão,
repugna-lhe a nossa luta por uma tal prevalência
e o matraquear dos negócios.
Alegria e tristeza
não são para ela sentimentos distintos.
Apenas na ligação dos dois
está ela ao nosso lado.
Podemos contar com ela,
quando de nada estamos certos,
porém curiosos de tudo.
Dos objetos materiais,
gosta de relógios de pêndulo
e dos espelhos que trabalham assiduamente,
mesmo sem ninguém olhar.
Não diz de onde vem,
nem quando tornará a deixar-nos,
mas espera evidentemente por tais perguntas.
Parece que
tal como ela a nós,
também nós
lhe servimos para algo.
in Instantes, Relógio d’agua, janeiro 2006, tradução de Elzbieta Milewska e Sérgio Neves, página 51